24.9.06

Abaixo da Superfície

Estou no meio de uma reforma. Uma reforma que eu adiei alguns anos e que, enfim, começou a surgir por trás do quebra-quebra. Para não correr o risco de ver o tamanho da bagunça, pedi ajuda profissional. Alguém que me entregasse aqueles destruídos cômodos com os devidos retoques, curativos, pintura nova e, se possível, uma decoração que não deixasse lembranças dos estragos causados pelo tempo.
Fiz o possível para não ver nada. Fechei os olhos. Ouvia os barulhos, desviava dos pedreiros e abria a porta somente durante a madrugada. Acendia todas as luzes, procurava defeitos, reclamava sozinha da demora. Um dia, no fim de um dia, acordei de mau humor e decidi pedir que acabassem logo com aquilo. Eu queria acordar em outro lugar...

- Cadê o pedreiro?
- Já foi. Disse que precisava sair com urgência e que não tinha caçamba pra retirada do entulho. Você vai ter que dar um jeito de tirar o lixo de lá durante a noite se quiser que eles continuem o trabalho amanhã de manhã.


Olhei para aqueles sacos espalhados e pensei em jogá-los em caçambas alheias. Já era madrugada, ninguém perceberia. Madrugadas fazem cair as máscaras... Tentei erguer um dos sacos de entulho e achei pesado demais para uma noite de lua e vento gelado. Vesti um casaco e fechei a porta. Sai dali antes que a poeira me causasse algum tipo de alergia. Voltei para a cama e apertei os olhos...


- Que barulheira é essa?
- O pedreiro!
- Que horas são?
- Onze da manhã.
- E ele só chegou agora?
- Só. Ele quer conversar com você.
- Diz pra esperar vinte minutos.
- Ele disse que está com pressa.
- Diga que eu estou com sono.
- Você precisa começar a me pagar pelos recados que manda.
- Você já recebe até para me dar bronca.

Quarenta minutos depois...

- Boa tarde!
- Oh, dona... Tarde. A senhora me desculpe...
- Só um minuto... Quem é o senhor?
- Ah, me perdoe. Eu sou o pai do Cristóvão.
- E o que aconteceu com o Cristóvão?
- Ele pediu que viesse eu porque ele está muito enrolado com outra obra e...
- Mas o senhor sabe arrumar esse piso?
- Fui eu que ensinei o trabalho pro meu filho, dona! Tô velho, mas sei o que fazer. Só tô um pouco cansado... Por isso atrasei.
- E o senhor me chamou para?
- É que eu vou ter que sair mais cedo porque minha mulher tá com câncer no corpo todo, sabe? Ela tinha um tumor há uns cinco anos e a senhora sabe como é a ignorância do povo, né? Na época ela não quis tratar e rasgou o tumor por conta e risco na cozinha lá de casa. Agora tá que não agüenta nem andar... O médico desenganou. E eu tenho que carregá-la nas costas de tão fraca que a pobre ficou. Grandona ela... Maior que eu! Mais alta que a senhora. Minhas costas tão que tão arrebentadas sabe, dona? Ainda errei o caminho, desci numa avenidona lá pra baixo e subi esses morros todos a pé até encontrar o endereço da senhora. Nem sei mais o que fazer da vida... Mas a senhora num se preocupe não porque até o fim do dia eu acerto esse piso todo. Já enfiei aquela bagunceira em sacos de lixo e deixei na calçada. É torcer pro lixeiro levar.
- Carregou aquilo tudo sozinho?
- O que são dez sacos de entulho pra quem carrega um fardo como o meu na vida, dona?
- Não é melhor o senhor ir pra casa cuidar da esposa? Eu falo com o Cristóvão depois.
- Não, não! Pra mim é uma alegria trabalhar porque é quando eu esqueço da vida. Duro mesmo é ir pra casa ou pro hospital e ver a minha preta naquele estado... Eu só queria mesmo pedir desculpas pra senhora pelo atraso.


Voltei para o quarto depois de tomar um café com o pai do Cristóvão. Fechei a porta, avisei que não queria atender o telefone e me joguei na cama de barriga para o alto. Fiquei um tempo olhando a cortina e as frestas de luz que entravam pela janela e dançavam refletidas na parede. Meus lençóis gelados e as fronhas de percal distraindo meu desconforto. O som distante da minha braço-direito-esquerdo cantarolando na cozinha se intercalava com o som da marreta quebrando o piso.
O que será de mim se, um dia, eu precisar carregar sozinha os meus sacos de entulho? O que será de mim se, um dia, os dias se tornarem mais sombrios do que as minhas madrugadas chorosas por coisa nenhuma? O que será de mim o dia que eu tiver que encarar os meus males ao invés de rasgá-los como faz a mãe do Cristóvão? O que será das minhas costas se for preciso carregar alguém maior que elas? O que será da minha arrogância se, um dia, eu depender da sua bondade? O que será de mim o dia que reformas não bastarem pra esconder meus alicerces? O que será de mim se eu tiver que confessar que não sou forte?

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