4.3.07

Viver e morrer em Bagdá

Sábado, 3 de fevereiro / Um dia sangrento
Um dos dias mais sangrentos em Bagdá. Um caminhão explodiu na área de Al Sadriya. Mais de 150 pessoas inocentes morreram e 250 ficaram feridas. Um dos funcionários da biblioteca foi ferido, outro perdeu seu primo.

Domingo, 4 / Outro dia ruim
Às 11h15 uma explosão fez nosso edifício tremer. Tivemos de esperar um pouco até que nos deram permissão para abandonar a biblioteca. Ao sair, vimos uma chacina e alguns carros totalmente destruídos.

Segunda-feira, 5 / Corte de luz
Fui ao Ministério da Energia para tentar convencê-los de excluir a Biblioteca Nacional do programa de racionamento (estabelece um máximo de duas a três horas de eletricidade por dia). Reuni-me com o diretor-geral do departamento de distribuição e lhe pedi o favor de nos dar seis horas de eletricidade por dia. Ele me disse que não pode ser. Bem, agora não tenho outro remédio senão pressionar o Ministério da Cultura para que conserte nosso gerador elétrico...

Na metade da manhã soube que o irmão do senhor K. (do departamento de catalogação) morreu. Às 14hs, um grupo de homens armados atacou a área onde eu moro. Houve muitos feridos e mortos: civis, inocentes... Mais tarde visitei meu primo, que foi atingido há duas semanas. Foi um dia triste...

Terça-feira, 6 / Nenhuma explosão
Não houve nenhuma explosão nem tiros. Repassei a lista de ausências da biblioteca e percebi que o senhor M. estava desaparecido desde a explosão de sábado... Hoje me visitou um ator conhecido que quer que lhe emprestemos nosso teatro para filmar várias obras. Eu lhe prometi que o cederia de graça porque concordamos que é preciso continuar promovendo as atividades culturais nestes tempos difíceis.

Quarta-feira, 7 / Sem notícias do senhor M.
Fui ao Ministério da Cultura para uma reunião. Nos arredores, todas as estradas e pontes estavam fechadas. Às 14hs terminou o encontro. Abandonamos rapidamente o edifício. Ainda sem notícias do senhor M. Começamos a pensar que pode ter morrido no atentado de sábado e que seu corpo tenha ficado enterrados sob os escombros.

Quinta-feira, 8 / Jornada "negra"
Dois de nossos bibliotecários (um sunita e outro xiita) se ofereceram para buscar o senhor M. Eu disse que não imediatamente. É perigoso demais.

Infelizmente, não me deram atenção e deixaram o edifício sem dizer nada. Depois de uma hora a senhora B. entrou em meu escritório chorando. Desconhecidos telefonaram para dizer que seqüestraram um deles na zona do atentado de sábado e perguntaram se era xiita.

Em pouco tempo comprovamos que o outro bibliotecário estava com ele. O caos se apoderou da biblioteca. Eu fui criado nessa área, a de Al Sadriya, e conheço muita gente lá. Então telefonei para um líder xiita do bairro e lhe perguntei se sabia alguma coisa. Garantiu-me que seus homens não o seqüestraram, mas que um grupo sunita muito ativo na área pode tê-lo feito.

Logo percebi que alguma coisa ia mal.

Trinta minutos depois apareceu um dos bibliotecários, o sunita. Ele explicou que o libertaram quando comprovaram que era sunita, mas que seu colega continuava seqüestrado... Não sabia onde... Logo eu percebi que não havia tempo suficiente para salvar sua vida. Contatei pessoas que têm influência nessa área. Mas no fundo do coração já sabia que era tarde demais. Uma hora depois um contato me informou que o bibliotecário tinha sido executado e que seu corpo fora abandonado em um beco.

Nesta noite meu irmão me telefonou de Londres para perguntar, como sempre, se minha família e eu estamos bem. Como sempre, disse-lhe que sim. Ele é muito otimista em relação ao novo plano de segurança para Bagdá. Creio que esse plano representa a última oportunidade para nós, e que se falhar será o final de um país e a escalada de uma guerra civil sem precedentes.

Sábado, 10 / O ser humano perfeito
Não há mais notícias sobre a execução do bibliotecário nem o outro companheiro desaparecido. Decidi criar um comitê especial para investigar o caso. Cada vez mais percebo que hoje em Bagdá o ser humano perfeito seria aquele capaz de desconectar todos os seus sentidos. Estar cego e surdo já não é uma maldição neste país, mas uma bênção.


Diary of Saad Eskander, Director of the Iraq National Library and Archive

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves - UOL

4 comentários:

Anônimo disse...

muito bom o blog, os textos... chega a ser praticamente impossivel imaginar tudo o que acontece fora dos nossos umbigos, então obrigada por isso.

Anônimo disse...

O blog MegaZona acaba de ressucitar em novo endereço: http://blogmegazona.blogspot.com. Atualize seus favoritos e faça uma visita. Valeu.

Anônimo disse...

Poderia pedir para o Lula ler isso para o Bush!!!

Anônimo disse...

Belíssimo post!