Deborah
Carteira, óculos de sol, batom com tampa, chaves da casa da minha mãe, medalha de Santa Terezinha. Onde está o papel do estacionamento? Livro de crônicas do Veríssimo, maço de cigarros vazio, maço de cigarros cheio. Eu não vou chorar. Não vou chorar por você, Paulo, não no meio da calçada da Avenida Paulista, não agora, não nessa vida, não por você. Eu não posso me dar ao luxo de chorar por você. Adesivo que eu comprei no farol de um surdo mudo, batom sem tampa e o barulho das moedas no fundo da bolsa. Que droga, onde foi parar aquele papelzinho amarelo do estacionamento? E por que eu estou tão nervosa? Não foi para isso que eu vim? E eu não percebi direitinho o que estava acontecendo? A distância, a falta de tempo, as viagens com a família, as intermináveis reuniões (ainda ouço a voz odiosa da secretária: “Dr. Paulo não pode atendê-la. Sim, ele ainda está em reunião. É, eu sei que ele está em reunião há dez horas, mas ele é um homem importante, fazer o quê? Sim, eu anoto, vou colocar na pilha junto com seus outros recados). O Dr. Paulo teve tantas reuniões nas últimas semanas que deve ter resolvido todos os problemas do mundo. Burra, burra, burra. No que você pensou que estava se metendo? Achou que ia ser engraçado? Achou que todo esse tempo tendo casos com homens casados, você nunca iria se apaixonar por nenhum deles? E agora que você se apaixonou e está aí, debaixo desse sol inexplicável para um começo de agosto, fazendo esse papel patético, espera que alguém tenha pena de você? Ninguém, meu amor, ninguém tem pena da (na linguagem da sua avó) outra. Por que você sabe que o nome técnico mais levinho é esse, não é? Sua mãe deve ter outros, mais claros. A mulher dele, se soubesse de você, teria alguns im-pu-bli-cá-veis. E com razão, devo acrescentar, toda, toda razão. Folheto de propaganda política com o telefone de alguém anotado num canto a lápis de olho, bloquinho de post-it, chicletes, livro de contos do Nelson de Oliveira, celular, bateria do celular, recarregador de carro para celular e a conta do celular que venceu dia 25 e você se esqueceu de pagar. Eu tenho que ter posto o papel do estacionamento por aqui. Tenta lembrar de tudo o que você fez. Parei o carro na porta do estacionamento, peguei o maldito papelzinho amarelo e fui com ele na mão até o restaurante. Entrei, o Paulo já estava lá. Ele se levantou para me beijar, puxou a cadeira para mim. Sentei, tirei os óculos escuros, abri a bolsa e joguei aqui dentro, os óculos e o papel. Joguei as coisas dentro da bolsa e fiz o quê? Olhei para o Paulo que falava sem parar sobre as filhas, sobre um concurso cretino de jardinagem que a mulher dele havia vencido no final de semana, e dos planos deles para a reforma da casa de Caraguá. Os planos deles. Planos. Sejamos francas, sua tonta, você achava mesmo que ele iria se separar dela? Nunca. Nem em um milhão de anos. Nem que Cristo viesse à Terra. Nem que chovesse canivete. Você, o oráculo das moças que têm casos. Você, sua arrogante, com suas regras prontas. “Nunca telefone”, “Não ouça histórias sobre filhos”, “Não se envolva em problemas domésticos”, “Não deixe que ele fale mal da esposa”. Você que sabia tanto, que entendia tanto, tão sábia, tão segura, tão superior. Você, que dizia conhecer truques que nem haviam sido inventados ainda. Você não tem competência nem para encontrar uma porra de um comprovante de estacionamento, e fica aí, ditando regras, tendo certezas. E agora, hum? Vai fazer o que com seu sonhozinho de criar os filhos dele numa montanha, com a música do Waltons de fundo? Vai fazer o que agora que você finalmente acordou, ou melhor, foi acordada (um pouco de perspectiva histórica, por favor) para o fato de que ele não é o Richard Gere (embora tenha aqueles olhos tristes e… controle-se mulher!), que você não é a Julia Roberts (ok, disso você já sabia) e que vocês não estão em Los Angeles? Porque meu amor, claro que foi nisso que você pensou, claro que foi nisso que você quis acreditar, e eu não sei? E eu não te conheço? Outro maço de cigarros, você está fumando demais. O isqueiro que você ganhou dele. (Lembra? Da última viagem que ele fez com a família para Aruba), talão de cheques solto, carteira, bolsinha de moedas vazia, claro, estão todas no fundo da bolsa, pó compacto, chupeta. Chupeta? Você teve um filho sem eu saber? De quem será isso? Montes de canetas com tampa e sem tampa. Trata de encontrar esse papel cretino e resista à tentação de colocar a culpa no Paulo. Você só ia ficar mais patética se virasse uma daquelas mulheres frágeis, medrosas, cegas e iludidas, que terminam as histórias balbuciando um estúpido “mas ele disse…”. A culpa é sua, só sua. Você tem trinta anos, CPF e plano de saúde. É você que tem que responsabilizar por sua vida e suas escolhas. E o Paulo, você sabe, foi uma escolha sua. Todos os outros também o foram, mas com o Paulo você resolveu pagar para ver. E, Cristo, como viu. Sua agenda cheias de papeizinhos misteriosos! Deve estar aqui. Não, não, esse não é, não também. Não está na agenda. Não está na bolsinha de maquiagem? Meu Deus, que sol! Para que uma bolsinha de maquiagem se você tem tanta maquiagem solta na bolsa? Graças a Deus você não chorou na frente dele. Não chorou quando ele disse que ele e a mulher conversaram muito e estavam dispostos a se permitirem uma segunda chance. Não chorou quando ele disse que gostaria muito de continuar a vê-la, desde que você entendesse, sem qualquer compromisso. Mas o melhor de tudo foi que nem biquinho você fez quando ele disse que você havia sido muito importante na vida dele e que você era muito nova e muito simpática e com certeza encontraria um homem que a merecesse e valorizasse. Eles sabem o quanto dói e fazem de propósito, ou é sem querer que eles nos arrasam com uma frase dessas? Você sorriu, balançou a cabeça com gravidade e desejou boa sorte nessa tentativa, deixando claro que não, não ficariam mágoas, afinal, eram ambos adultos e sabiam que o final seria assim. E quando você abriu sua carteira e deixou dinheiro suficiente para pagar uns dez martínis? Essa foi digna do Oscar. Você se levantou com classe, se despediu com classe, caminhou até a porta de vidro com classe e por isso, essa cena assombrosa no guichê do estacionamento está quase perdoada. Ah! Claro, você colocou o papelzinho no bolso do casaco! Isso, entregue o papel para a moça. Tudo bem, pode, mas uma lágrima só, agora pode. Sem ruídos. Ok, duas lágrimas, tudo bem. Pronto, seu carro chegou. Vai embora para a sua casa, que você tem uma porção de coisas para resolver hoje. Boa garota. Engata a primeira, sem ela engatada não adianta apertar o acelerador. Isso. O manobrista deve ter adorado o isqueiro folheado a ouro com uma palmeira em alto relevo.
Nomes só