9.1.09

Bonequicha

Daí tem esse travesti que mora aqui perto do meu prédio. Não sei quão perto, mas chuto que é em um raio de 300 metros, se tanto. Eu moro na 304, ele* mora na 704. E você, que não conhece Brasília e a organização lógica - e uso o termo “lógica” aqui com certa liberdade - da cidade, fica se perguntando se a 704 não fica a 400 quadras da 304. Não, não fica. Apenas uma quadra separa a 304 da 704: a 504.

Mas enfim. Daí o traveco pega ônibus no mesmo ponto que eu. E da primeira vez que vi o travesti, só fui perceber que era um travesti bem depois quando já estávamos amarfanhados em um amasso violento, quando ele, ao meu lado na van que pegamos - ele para o Setor Comercial Sul, onde faz ponto, eu para a casa da patroa, pra bater meu ponto - pediu “Pára no semáforo aí” com uma voz masculina tremendamente cavernosa. Eu tinha sono no dia (muito sono), já estava escuro e tudo o que eu queria, ao entrar na lotação, era um lugar pra sentar e dormir até chegar na distante - e maldita - terra de Taguatinga. Se você não conhece taguatinga, acredite no que eu digo: você também não quer conhecer. Taguatinga é a sucursal do inferno, a versão terrena dos reinos do Capiroto, o círculo externo da estrutura concêntrica do reino das profundezas. Taguatinga é uma desgraça. Eu odeio taguatinga.

Mas enfim. Quando a van passou e o cara disse “W3 Sul, setor policial, comercial norte” tudo o que eu pensei foi “É nessa que eu vou”, e me referia à van, e não ao traveco. Até porque o traveco estava na outra ponta da parada e tinha recebido de mim um olhar bastante desdenhoso. Achei que era só uma mulher esquisita. Entrei na lotação, fui pro último banco e me aconcheguei lá, encostado na janela, agarrado à minha mochila, disposto a curtir o máximo possível o sono intermitente que teria nos próximos 45 minutos de duração da viagem cheia de solavancos até o portão de entrada do Hades. O que um homem não faz por amor…

Ao meu lado sentou-se um cara, ao lado dele o travesti que tomei por uma guria esquisita, como eu fui saber depois. Logo antes do Pátio Brasil, um shopping bem no começo da W3 sul, ouço uma voz de narrador de rádio-novela pedindo “Pára no sinal aí por favor!”. A van parou e a guria - que na claridade da van não parecia uma guria, em absoluto - desceu, enquanto eu agradecia internamente por toda a educação que minha vó me deu e que me mantém um cara invariavelmente sóbrio nesses 27 anos de existência.

A segunda vez que vi o travesti foi alguns dias depois, na mesma parada, quando eu esperava o mesmo ônibus para ir para a mesma taguatinga, que permanecia então (e permanece, ainda) a divisão de interação humana com o mundo das trevas. Eu estava encostado na parede esquerda da parada, ele estava na beira da pista. Além de nós dois, uma senhora aguardava sentada no banco e dois caras conversavam perto do “pirulito” (um pirulito é um cilindro de concreto com cerca de 2,5 metros de altura, feito para receber cartazes colados por gente porca que acha que parada de ônibus é lugar de colar cartaz e fazer publicidade, evitando, assim, que a papelada seja grudada nas paredes da parada - sem sucesso, é claro, já que as pessoas colam os cartazes no pirulito E na parada, mostrando que o espírito de porco publicitário está cada vez mais vivo e forte nos dias atuais).

Pois bem, uma van parou e o cobrador gritou o destino: W3 sul. O traveco se adiantou para entrar na lotação, o cobrador abriu a porta e desceu, dando espaço pra ele entrar. De sacanagem, o cara da van virou para os homens na parada e disse “Aí, a menina tá procurando namorado, ninguém se candidata, não?”. Eu ri. Um dos caras perto do pirulito não pareceu achar tanta graça e resolveu retrucar, respondendo o cobrador rispidamente:

- Se foder, mermão! Sai pra lá com essa porra. Quem gosta de macho é… é…… outro macho!

Quem gosta de macho é outro macho.

Mais de dois anos depois, ainda não entendi o que isso faz de mim!

utopia

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