Vamos parar de falar merda sobre o Bolsa-Família?
Detesto falar de pobre. Mas as circunstâncias às vezes me obrigam. Como o que se segue está pessimamente escrito, e eu não vou revisar porque tenho mais o que fazer no sábado à noite, vai tudo na extended entry para não enfear o blog
O que é o Bolsa-Família, esse programa abraçado pelo Banco Mundial e pelo Consenso de Washington? É claro que não vou fazer um post preciso e didático, porque ia ficar mais chato ainda e eu acabaria não fazendo. Bem, o BF tem um quê de Milton Friedman: dê dinheiro ao sujeito e não coisas (comida, por exemplo) que você acha que ele necessita. O miserável sabe usar muito melhor o dinheiro em benefício próprio, comparado com o que você daria a ele usando o mesmo dinheiro. Isto é um aspecto.
O outro é o seguinte. Nos anos 60 e 70, quando nossa população explodiu, o Brasil optou por grandes obras e otras cositas más em detrimento da educação das massas que surgiam. Criamos, com isto, um enorme contingente de sujeitos sub-educados e ineptos a sobreviver dignamente no capitalismo, que continuaram a se reproduzir, chegando até a massa atual de sujeitos sub-educados e ineptos a sobreviver dignamente no capitalismo.
O custo de pegar um sujeito destes, a partir dos 18 anos de idade, e transformá-lo num cara minimamente educado e apto a sobreviver dignamente no capitalismo provavelmente daria para pegar 500 crianças de 3 meses em lares de analfabetos e miseráveis e, dando – digamos – dois ou três anos de atenção especial intensiva a elas nesta tenra idade, criar uma grande probabilidade de que a maioria delas, quando crescer, se torne minimamente educada e apta a sobreviver no capitalismo, mesmo que, depois daquele programa intensivo, continue a morar no contexto miserável em que nasceu. Isso está praticamente provado, ok?
Ora, você não vai gastar os recursos públicos escassos tentando – a um preço caríssimo, e com opções de gasto tão mais atraentes quanto a descrita acima – transformar adultos sub-educados e ineptos a sobreviver dignamente no capitalismo em adultos minimamente educados e aptos a sobreviver dignamente no capitalismo. A menos que você seja uma besta, você vai investir nas crianças, e quanto mais cedo, melhor.
Então, o que fazer com esta massa de adultos sub-educados e ineptos? Até os anos 90, a opção foi a de deixar eles se foderem. Aí entram dois aspectos. O primeiro é moral e político (no sentido nobre da palavra). A sociedade brasileira falhou com estes caras, ao deixar que crescessem sub-educados. Agora, ela tem uma obrigação moral de garantir que eles tenham um mínimo de dignidade até morrer. O BF é em grande parte isso: um mínimo, pequenininho mesmo, que você dá aos ineptos porque um país decente responsabiliza-se por todos os cidadãos. É muito barato e não dá para comparar com o custo caro, e com o foco rombudo, das aposentadorias que no fundo são benefícios sociais dadas a idosos e supostos idosos no valor de um salário mínimo. So, voltando ao BF, a tal porta de saída para os adultos não é tão importante quanto dizem. É claro que se deve tentar. É claro que vamos dar a eles alguns instrumentos para ver se saem da inépcia. Mas não esperem grandes coisas. O Brasil já fodeu com estes caras quando eles eram criancinhas. O BF é um preço pequeno a pagar (e é pouco mesmo, em termos fiscais) para o crime de ter gasto na construção de Brasília o que não se gastou para educar a molecada em plena explosão populacional.
Bem, o segundo aspecto é sócio-econômico. Estes ineptos são pais de crianças que potencialmente podem não ser ineptas. É por isto que há condicionalidades educacionais e de saúde. Para que as crianças dos ineptos consigam ser minimamente educadas. As condicionalidades, especialmente as de educação, estão sendo paulatinamente implementadas. É um desafio logístico e de sistemas gigantesco. É um problema eminentemente técnico. Se você vir dois gerentes do BF conversando sobre cadastro e condicionalidades, e se você não for familiarizado com estatística e sistemas de computação, não vai entender xongas. Não tem nada de frei Beto e das emoções baratas da solidariedade. É um papo técnico chato e pesado pra chuchu.
Um aspecto pouco entendido do BF, como gosta de frisar o Ricardo Paes de Barros, mencionado pelo Matamoros, é que a merreca que as famílias recebem às vezes é o que as tira do caos da indigência e permite que haja um mínimo de estabilidade no processo educacional das crianças. É a menina de 8 anos que não precisa faltar escola para cuidar do irmão de 4 quando a mãe fica doente, é a mãe que pode andar todo o dia com o filho até o distante ponto de ônibus (já que não precisa fazer um bico nessa hora), é o dinheiro do transporte, do material escolar, etc. O fluxo regular de grana do BF dá um mínimo de organização a estas famílias, que elas não teriam se dependessem apenas dos ganhos muita vezes irregulares dos trabalhos miseráveis. O Paes de Barros compara o BF a uma bolsa da Capes ou do CNPq, que é uma grana que permite ao mestrando ou doutorando estruturar a sua vida para se dedicar ao estudo. O BF é uma bolsa que permite ao pobre e miserável estruturar a sua vida para que suas crianças se dediquem ao estudo.
Bem, as pesquisas indicam que a tal substituição de trabalho por BF (a mãe e o marido param de trabalhar), apontada pelo Jarbas Vasconcellos quando chegou no seu restaurante predileto e não encontrou os serviçais de costume, é muito pequena ou inexistente. Na verdade, a substituição seria até boa até certo ponto, porque, ao rarear a oferta de trabalho nas profissões mais humildes, ela elevaria salários. Ela poderia também eliminar, ou reduzir muito, as ocupações aviltantes, tipo trabalho escravo, ou nas piores usinas de açúcar, etc.
As pesquisas também indicam que o BF é um dos programas do gênero no mundo com o menor nível de fraudes. Fraudes existem em qualquer programa social, seja no Congo ou na Suécia. Com 11 milhões de famílias beneficiárias, se todo o dia o Jornal Nacional mostrasse 1000 casos novos de fraudes no BF, ainda assim, em termos estatísticos, o BF ainda seria um dos programas de gênero com menos fraude no mundo.
Bem, enchi o saco de escrever sobre pobre. Arre!
torre de marfim
3 comentários:
Eu trabalho na área da Caixa que atende o BF. Já atendi muita prefeitura e agência sobre o Cadastro Único, esse cadastro super técnico, complexo e pesado citado, portanto posso confirmar a linha de pensamento do texto.
Foi a melhor descrição (salvo uma parte ou outra que dizem mais respeito a opiniões pessoais)que já vi até agora!
Só economista neo-clássico com a idéia de homo economicus muito arraigada na cabeça vai achar que gente quer trocar trabalho por auxilio do governo.
Coloca na função utilidade do cara a sensação de libertação de poder prosseguir com a própria vida com dignidade e olhar no olho dos seus pares com orgulho de ter vencido a miséria, e calcula de novo o equilibrio geral e vamos ver quantos vão trocar o trabalho pela bolsa. Pouquissimos.
E mesmo que troque: eu prefiro ver o dinheiro do meu imposto sustentando alguém que não tem outra alternativa do que ver essa pessoa em um trabalho degradante.
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