29.11.02

Essa mulher me diverte. Aquele cabelo cor de beterraba, meu Deus! Eu não queria rir, as mulheres são muito suscetíveis a esse tipo de coisa. Mas, puxa vida, o cabelo dela estava engraçado demais! Achei que fosse uma piada, não um infeliz acidente. Ainda mais no dia da festa do Jair, pensei tratar-se de algum tipo de tintura temporária para completar a fantasia. Só depois lembrei que Branca de Neve tinha cabelos de uma coloração normal, nada parecido com aquele tom de Tang de uva.
Enfim, quando percebi que o negócio era mesmo sério, resolvi que era melhor tentar ajudar. Sugeri várias fantasias que completariam bem aquele cabelo, mas ela começou a se enfurecer com isso. Esgotadas as possibilidades, e já muito perto da hora da festa para sair à procura de lojas de fantasia, apelamos para o Temível Cotonete Gigante.
Faz-se necessário explicar que na época da primeira festa do Jair eu ainda não era dotado do senso de ridículo apurado que tenho hoje. Então comprei pantufas brancas, um macacão azul e uma peruca black power nada discreta. Tingi a peruca de branco e voilá: Estava pronto o Temível Cotonete Gigante. Fui o destaque da festa, e a fantasia de cotonete foi a desculpa perfeita para algumas cantadas picantes, todas fracassadas. Acabei arrumando companhia para aquela noite apelando para o absoluto nonsense: Disse à garota que eu era muito flexível, que o meu algodão não largava fiapos nem soltava da haste, além de receber tratamento antigerme; tudo isso no tom de voz que os ricos devem usar para falar de suas mansões, carros importados, iates, contas na Suíça. Ela riu muito e eu pensei, "Tá no papo". Continuou rindo durante todo o caminho para o meu apartamento. Ao chegarmos, se jogou no sofá, ainda rindo. Fui pegar um uísque para ela, e quando eu entrei na sala com os copos na mão, aí que ela teve um ataque de riso sério mesmo, quase morrendo engasgada. Deve ser mesmo muito engraçado ver um cotonete servindo drinques. Sei que ela riu tanto que a noite foi um fracasso absoluto, e a fantasia de cotonete foi relegada ao limbo do fundo do armário. E ali permaneceria para sempre, mais uma de minha coleção de lembranças constrangedoras. No entanto, frente ao impasse causado pelos cabelos fúcsia de minha namorada, o Cotonete Gigante surgiu como salvador da pátria. A Senhorita Não-Pago-Mico relutou em aceitar a fantasia, mas não demorou para se dar conta de que não tinha alternativas. Quanto a mim, foi fácil: A roupa de bombeiro finalmente serviria para alguma coisa além de me fazer passar vergonha na frente dos amigos. E lá fomos para nossa festa, o valente soldado do fogo e sua namorada de hastes flexíveis. Ridículo.
A cada festa do Jair eu me espanto mais com minha capacidade de desconhecer pessoas. Na primeira festa eu conhecia todos os convidados. De uns anos para cá, porém, sinto-me cada vez mais deslocado. Na festa do ano passado acho que eu só conhecia mesmo a minha namorada, o próprio Jair, a Marininha e mais uns dois ou três. Mas a festa de ontem foi como um retorno aos velhos tempos: Desconhecidos me cumprimentavam efusivamente, me abraçavam, me apresentavam a outros desconhecidos. Fiquei sem entender nada até que um japonês gordinho perguntou para o Jair se eu era o cara da história.
-- Que história, Jair?
-- Da roupa de bombeiro, oras. Contei para os primeiros que chegaram, e parece que gostaram muito, porque a história se espalhou. Sorria, você está sendo famoso!
O Jair acha que é engraçado trocar palavras de frases batidas. E acha mais divertido ainda difamar seus amigos perante desconhecidos. No fim da festa, eu já havia contado minha versão umas cem vezes, com todos os detalhes da ida da minha namorada ao Clube das Mulheres e do passeio de carro para arejar a cabeça que acabou levando à idéia do uniforme de bombeiro. Da mesma forma que na primeira festa, fui o centro das atenções. Mas dessa vez de uma forma bastante incômoda, primeiro porque não estava fazendo sucesso pela fantasia em si, e segundo porque agora tenho senso de ridículo, demais até.
Enquanto eu sofria a tortura de me expor à chacota pública, minha cara-metade circulava com desenvoltura enfiada em sua fantasia de cotonete. Muitos engraçadinhos se aproximaram dela. Eu olhava feio, mas quem é que levaria a sério o cara da história do bombeiro? Aquilo foi me irritando, então quando a vi conversando com três babacas, e ainda rindo feito boba das piadas estúpidas deles, não agüentei mais: Cheguei perto e "sem querer" disparei meu extintor de incêndio. Ela me fulminou com o olhar, mas não importa, os três foram embora. Para os meus padrões de bêbado (sim, porque já havia enxugado alguns copos), disparar o extintor fora uma atitude bastante madura e máscula. E mais maduro e másculo ainda me mostrei quando o Jair anunciou no microfone:
-- Atenção! Em homenagem ao nosso amigo bombeiro, vamos ouvir agora The Doors, Light My Fire!
Sorri amarelo quando a música começou
(You know that it would be untrue)
Sentia como se estivessem todos olhando para mim.
(You know that I would be a liar )
E talvez estivessem mesmo.
(If I was to say to you )
-- Sobe no palco! -- gritou alguém.
(Girl, we couldn't get much higher)
E até que não me pareceu má idéia
(Come on baby, light my fire)
Comecei a me dirigir ao palco, sob aplausos
(Come on baby, light my fire)
-- DANÇA! -- berrou outro gaiato.
(Try to set the night on FIRE!)
Comecei a dançar. Desajeitado no começo, fui me soltando. O povo me ovacionando, todo aquele álcool na cabeça, aquele som sensual dos Doors... Acho que acabei fazendo um strip-tease. É, fiz mesmo. As pessoas aplaudiam e gritavam enquanto eu ia desabotoando a roupa. Quando estava só de calça e quepe, me lembrei de procurar minha namorada com os olhos. Esperava encontrá-la longe do palco, com cara de sexo-nunca-mais. Para minha surpresa, ela estava logo ali na minha frente, batendo palmas e gritando "Gostoso!", "Tesão!". Deus, eu amo mais ainda essa mulher quando ela está bêbada. Chamei-a ao palco para me ajudar com o resto das roupas. No final era uma cena linda de se ver: Uma mulher vestida de cotonete sendo levada de cavalinho por um bombeiro de cuecas e quepe. Alguns convidados chegaram mesmo a pedir bis, mas não foi possível: Saímos pela porta dos fundos e voltamos para casa, para um bis particular e bem mais completo que o show original.

inserido no Balde de Gelo

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