Depois de alguns dias eu já tinha esquecido do assunto. Porém, um dia toca meu telefone no escritório.
— Márcio? É a Gláucia.
Algunsmomentos de silêncio.
— ... então você me achou... — Realmente, não tinha ficado muito animado em ouvir aquela voz de novo. Tinha algo de errado naquela voz.
— É, eu liguei pra sua casa e pedi pra sua mãe me dar o telefone de seu trabalho.
Isso porque ela não quis anotar o número algumas semanas antes por que iria ficar ligando.
— E, aí?
— Arrumei dois ingressos para uma peça que eu gostaria muito que você fosse.
— Pode ser... — Na verdade estava pensando no que dizer.
— É com a Estér Goes. — Isso era para me animar a ir?
— Tá bom, vamos lá.
Achei que o melhor era ir e acabar com a história de uma vez por todas.
...
Ela falava muito, mas não conseguia escutá-la. Só sei que uma hora ela falou:
— Você não acha legal eu falar que você está bonito?
— Acho. — Se ela achava que eu iria retribuir a gentileza, estava muito enganada. Posso ser cínico, mas não idiota.
Como descartei a idéia de jogá-la na frente de um ônibus em movimento, o que certamente resolveria meus problemas, meu plano básico era assistir a peça e deixá-la em casa em seguida. Porém, descobri que ela tinha dois convites para a peça que deveriam ser trocados na bilheteria por ingressos, só que estes já estavam esgotados. Torci para ela dizer: "Então me leva pra casa."
— E agora, o que fazemos? — perguntou ela. Não era bem o que eu queria ouvir.
— Sei lá. Podemos ir ao cinema — pelo menos durante o filme não precisaria conversar com ela.
A única sessão que encontramos ingressos foi para A Gaiola das Loucas, às 21h30. Isto significava que teria de passar pelo menos mais uma hora conversando com Gláucia. Desespero. Sentamos num barzinho para passar o tempo. Ela pediu um chopp e, eu, um suco de laranja.
— Não quer um chopp também?
— Não, estou meio ruim do estômago, não vai fazer bem — não disse que ela era quem tinha me causado o mal estar.
— Toma um chopp, vai.
— Não quero.
— Só um.
— Não quero, caramba!
— Pô, sair com você está sendo um saco!
Enfim uma deixa que eu precisava. Bati as mãos com força na mesa e disse:
— Então vamos embora agora!
— Ihh, ficou nervosinho é?
Minha sugestão de retirada não tinha sido aceita.
Quando meu suco chegou estava realmente irritado e comecei a mexer o líquido com o canudinho com tanta força que começou a espirrar para fora da copo. Resolvi adotar uma nova tática: mentir muito.
— Sabe o que é? Depois que aceitei seu convite eu voltei com minha ex-namorada, que está viajando. E só vim porque não queria furar contigo de novo.
A expressão dela mudou. Algo entre decepção e admiração. Afinal, um homem tão comprometido com sua namorada merecia respeito. Aí ela baixou a guarda.
— Ahh, você voltou com sua namorada. Sabe que eu também estou saindo com um cara mais velho. É diretor de teatro. A gente até andou pensando em morar juntos, mas ele não compartilha de alguns de meus planos.
Fiz aquela cara de "desenvolva", já tendo medo do que eu ouviria. Ela prosseguiu:
— Eu até fui na Febem no fim de semana passado para cuidar do assunto...
— E... — agora eu estava com uma curiosidade mórbida.
— É que eu estou pensando em adotar um filho.
Meu silêncio foi eloquente, enquanto tentava fazer cara de quem acha aquilo nomal e procurava alguma coisa inteligente para dizer.
— Legal — foi a única coisa que consegui dizer.
— Sabe, tenho um instinto materno muito aflorado. Outro dia fui no médico porque estava sentido umas sensações esquisitas nos seios e ele me disse que eu estava com leite materno.
— Sei... — Ainda fingindo achar tudo muito normal.
— Não sei se você notou, mas sou uma pessoa muito ansiosa. — O garçom provavelmente tinha notado isso. — Para conseguir dormir eu tomo Valium e Prozac.
— Quer coisa... — já era impossível agir naturalmente.
— O médico até comentou comigo que isso era falta de sexo.
Quase disse que não poderia ajudá-la nesse aspecto, mas achei melhor ficar calado. Mesmo porque ela não parava de falar. Pelo que pude entender, todo mundo era louco na família dela: pai, mãe, tios, irmãos. Foi quando ouvi a melhor de todas:
— Fui criada como budista a minha vida, mas agora estou treinando para ser mãe-de-santo.
Eu só queria desaparecer. Uma mãe-de-santo budista era demais! Estava com vergonha de estar em companhia daquele ser bizarro. Olhava para o lado para ter certeza de que não havia nenhuma pessoa conhecida por perto.
Felizmente, entramos no cinema e, por duas horas, fiquei sem ouvir mais barbaridades. Ela sentou à minha direita e eu fiquei com o corpo inclinado à esquerda durante todo o filme para não haver mal entendidos.
extraído das Memórias de um Desmemoriado
21.1.03
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário