21.2.03

Valéria

Eu estava na loja de discos, vendo uns vinis do Simon & Garfunkel, ela disse que adorava a versão do Lemonheads pra "Mrs. Robinson". Eu disse que também gostava, mas que nada era melhor que a original de "America". Ela me perguntou se eu era um burguesinho qualquer, eu respondi "não somos todos?" Ela sorriu. Eu disse que ia ver um filme, ela disse que também. Não, não era o mesmo filme, mas combinamos de tomar um café depois da sessão. Eu saí no meio, fui na bombonière, peguei dois cafés e voltei pra sala - a dela. Ela estava na primeira fila, eu disse que preferia a última, ela riu com desdém e disse que assim eu perdia os detalhes. Disse que ela perdia a visão global e ela ficou intrigada. Enquanto ela decidia se eu estava certo, sentei e derrubei o copo de café dela - em cima de mim. Ela gargalhou, eu pulava de dor, e ela me acompanhou pra fora do cinema passando o braço pelas minhas costas - pelo ombro, como se ela fosse maior que eu (e ela talvez era agora, que eu estava me contorcendo ainda). Ela me deixou na porta do banheiro dos homens, eu me sequei com duas folhas de papel de alta absorção e troquei a camisa manchada por um casaco que eu carregava na mochila. Ela riu quando eu saí e disse que eu ia morrer de calor. Eu disse que a gente podia ficar no cinema até a última sessão (eram muitos filmes), ela disse que ia ter que tomar um café antes, mas que dessa vez ela pegava.

Sentamos numa mesa da praça de alimentação, e ela enfim perguntou meu nome. Valéria, esse era o nome dela, e ela trabalhava no departamento de marketing de uma companhia de energia elétrica. Eu disse que era jornalista, ela riu com desdém de novo, mas dessa vez um riso carinhoso, um "eu sabia". Eu perguntei "o que é engraçado?", ela desconversou, e voltamos pro cinema, e ela não falou uma palavra ao longo do filme, e eu não lembro nem quem eram os atores, mas nunca vou esquecer que ela tinha acabado de fazer as unhas naquele dia - tão bonitas, pintadas de azul-claro. Eu ia fazer uma piada ruim, ela fez "shhh", e eu entendi que já estava chateando. Me acuei e quando o filme acabou ela não parava de falar e falar e rir, e eu me envolvi de novo e retrucava coisas inteligentes e ela ria mais, até que pegou na minha mão, como se fôssemos velhos amigos. Eu me assustei, e olhei pra ela, que na hora entendeu o que tinha feito e eu vi aquele sorriso se transformar num olhar esbugalhado de surpresa e eu ri e peguei de novo na mão dela, e ela parou, pensou (rapidinho, rapidinho, e não pareceram horas, foi rapidinho mesmo), apertou minha mão com força e voltou a rir, e eu voltei a rir também.

Assistimos ao filme todo de mãos dadas, mas depois do "shhh" eu fiquei com medo de interromper ela de novo. Era um desses filmes de estrada, e ela me perguntou se eu tinha carro, e eu não tenho. Ela não ficou desapontada, ficou pensativa, e eu juro que li naquela curva das sombrancelhas algo como "hmmmmm, então ainda precisamos descolar um carro". Pensando nisso perguntei "por quê?", e ela me respondeu que "precisamos descolar um carro se algum dia resolvermos fazer uma dessas viagens". Eu fiquei abobalhado e pensei que ela era perfeita demais, ela leu meus pensamentos e riu, e me deu um beijo na bochecha. Eu corei, ela me puxou pra próxima sessão, e naquele meio segundo entre o apagar completo das luzes e o início da projeção dos trailers, ela me beijou de novo, e dessa vez, beijou mesmo, e era macio, lento, ritmado. Eu beijei ela de volta, e beijei, e beijei, e quando fiz menção de interromper o beijo pra poder ver o que olhos dela me diriam que tinham achado, ela botou a mão na minha nuca e cochichou com os lábios colados nos meus que a gente já tinha visto esses trailers mil vezes hoje.

Quando o último filme acabou, ela me disse "hei, e agora o quê que a gente faz?", e eu disse que se já tinha passado de meia-noite, era meu aniversário. Ela sorriu, enfiou a mão na bolsa e me deu metade de um chocolate. Eu ri e disse que era o meu favorito, e ela não acreditou - mas ela estava certa, eu odeio côco. Ela tomou da minha mão, deu uma mordida tirando quase todo o pedaço com recheio e me devolveu a pontinha, dizendo que eu tinha que comer "pelo menos esse pedaço, que tem mais chocolate". Eu comi e ri, e ela começou a cantar parabéns pra mim, com as pessoas saindo do cinema olhando como se fôssemos loucos. Eu tive o impulso de pegar nas mãos dela, e não só interromper meu constrangimento mas poder sentir aquela mão macia e quente de novo, e as unhas pintadas de azul. Mas desisti, e joguei a cabeça pra trás, rindo e pensando "ah, como eu sempre quis alguém assim". Acho que acabei pensando alto demais, e ela parou no "é pique..." pra olhar pra mim e abaixar a cabeça devagar, sorrindo com o canto da boca, meio envergonhada, meio lisonjeada.

Ela disse "se você quer namorar comigo, eu quero conhecer sua avó primeiro". Eu ri, e ela disse que a avó do ex-namorado dela fazia de tudo pra separá-los, e eu ri mais porque a minha avó é legal e eu tenho certeza que elas vão se gostar. Eu disse isso pra ela e ela riu também e pegou na minha mão de novo, me deu mais um beijo na minha bochecha, e foi me conduzindo pra fora do shopping já fechado. Fomos conversando amenidades até o ponto de ônibus e ela disse que morava no Catete. Eu disse que morava em Copacabana, mas já tinha morado no Flamengo, e ela disse que adorava Copacabana, mas detestava o Flamengo porque torcia pro Fluminense. Eu disse que também torcia, e ela me chamou pra ver o próximo jogo nas Laranjeiras, e eu topei. Ela disse que precisávamos trocar telefones, e trocamos e no meu, ao invés de escrever meu nome, escrevi só "seu", e ela no dela deu um beijo com o batom fraco que ela usava, marcando de rosa quase invisível o papel que me entregou dizendo "eu sempre quis fazer isso". Mal ela terminou de dizer e o ônibus dela chegou. Ela me deu mais um beijo e foi, eu fiquei um tempo parado vendo o ônibus ir embora.

fredleal.com

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