12.2.03

Vídeo-texto (Post VII)

Quem entende?

Azar. Cruzamos com o Cláudio (o bêbado) na recepção. Pelo menos ele não havia mentido sobre ser o dono da empresa. Passou por mim batido. Parou, virou o corpo em nossa direção, me olhou por cima dos óculos e falou:
- Você?!?!
- Eu! - Pairou no ar um instante de silêncio e interrogação. Que diacho de reação de espanto era aquela?
- Você! Na minha sala!
- Quê? - Escapou um sorriso nervoso que eu amarrei na boca para não escancarar de vez a autoridade ridícula que o bebum da noite anterior, naquele instante sóbrio e obviamente perturbado, tentava impôr no seu ambiente de trabalho.
- Só você, na minha sala, agora!
A recepcionista, com uma expressão besta estampada no rosto como se já estivesse acostumada; o Valmir com a testa franzida e, provavelmete, se perguntado se aquele tantã sabia com quem estava falando. Também, pudera! Na cabeça dele não devia fazer o menor sentido o sujeito se dirigir daquela forma a uma mulher desconhecida. Sem opção, eu o segui até a sua sala. Ele deixou a porta entreaberta, eu entrei e ele me puxou de canto:
- Você não é a menina do bar de ontem?
- Sou.
- E o que você esta fazendo aqui?
- O senhor me deu o cartão e pediu que eu...
- Eu te levei pra casa?
- Não... Claro que não! Como assim? - Pensei: Que papo de louco desse cara! Qual é a dele? Mas, de repende, o cidadão respirou aliviado.
- Ufa! -
- Eu mostrei o vídeo-texto...
- Há! O aparelho que mostra o paradeiro dos devedores?
- Isso! - Bom sinal. Ele lembrava do que era necessário. - O senhor pediu que eu passasse aqui para fechar o contrato, lembra? - Arrisquei! Tudo era tão surreal que achei que o pesadelo poderia se reverter em algum tipo de recompensa a meu favor.
- Sei, sei... Quanto custa?
- Como assim quanto custa? Eu não vendo criatura, eu só alugo. Contrato de 36 meses de locação do terminal, mas eu vou ter que mostrar todo o sistema de novo para o senhor.
- Por quê? Não quero ver tudo de novo! - O destemperado falava gritando, queimaria meu filme em meio minuto se continuasse com aquela conversa sem pé nem cabeça. Foco. Eu precisava focar a conversa.
- Psiiiiuuuu... fala baixo! Se o senhor disser que tudo bem, eu posso ver se consigo uma redução de tempo de contrato para 30 meses. Negocião da China, é pegar ou largar!
- Que?
- Tá bom, tá bom... É que meu supervisor está ali e ele quer me ver em ação... coisa de vendedor, sabe como é... É minha primeira semana no emprego e o cara cismou de ficar atrás de mim pra ver se eu estou fazendo o trabalho direito. Custa deixar eu mostrar o sistema de novo pra você? - Foco e sinceridade, impossível que ele não colabarasse comigo! Ele deu uma espiada no Valmir, saiu da sala, pegou sua carteira em cima da mesa da recepcionista e disse em voz alta para que eu mostrasse o sistema para a recepcionista.
O filho da mãe me deixou lá com cara de tacho e se mandou. A recepcionista, louquinha pra ver a novidade. Não tive escolhas, mostrei o sistema pra moça com todo o "mise-en-scène" que o Valmir queria assistir e sem fechar, mais uma vez, contrato algum.
Sai arrasada de lá, e não lembro exatamente o porquê, mas o resto do dia não trabalhamos. Talvez o Valmir tenha sentido a a presepada toda, mas nunca tocou no assunto. Almoçamos na casa dele, vi álbuns de família, tomamos umas três garrafas de vinho e nos tornamos grandes amigos. De toda a longa conversa que tivemos, lembro-me de ter contado como eu havia parado naquele emprego, da terrível viagem pra Chapada dos Guimarães, da bagunça da minha vida e do quão sem rumo eu me encontrava.
- Ale, que idade você tem mesmo?
- Dezenove.
- Você tem dezenove anos. Sabe o que é isso? Sabe o que significa ter dezenove anos?
- Anh...?
- Significa que você tem pelo menos dez anos menos que o vendedor mais novo da Teletel, significa que você é uma garotinha precoce, metida a adulta. E faz isso tão bem, que cansou de convencer as pessoas e está tentando convencer a si mesma da sua capacidade. Ale, acorda, Ale! Vai fazer o que você quiser da sua vida, vai ser quem você quiser ser. Você tem a vida inteira nas suas mãos, você pode ser o que você quiser ser. Olha pra frente, mulher!
O danado era tão bom vendedor que me vendeu a idéia de que tinha um futuro sorrindo de braços abertos embaixo do meu nariz.
No dia seguinte cheguei na empresa e havia um recado sobre a minha mesa: "Alessandra, me liga urgente! Minha mulher adorou a sua apresentação do vídeo-texto. Vamos fechar contrato. Avise o seu supervisor que, se ele não quiser você trabalhando aí, aqui tem vaga pra você."
- Puta-que-o-pariu! Que puta bebum gente boa! A recepcionista! A recepcionista era mulher do bebum! Que puta sorte! - Eu, besta de feliz, enquanto o Valmir, de calculadora na mão, berrava os valores do meu primeiro contrato.

na tigela de amarula com sucrilhos

Nenhum comentário: