8.3.03

Aos 12 anos, mais ou menos, eu pensei em me matar pela primeira vez. Era uma coisa de pré-adolescente que não suporta o peso dos hormônios. Pensei em me matar porque tinha orelhas de abano e porque caíra da bicicleta e porque a minha pela qual eu era apaixonado me negara um beijo. Coisa assim. Como o tempo passou e a condição de rejeitado amorosamente, desastrado no ciclismo e anatomicamente imperfeito permanecera até uma operação plástica aos 21 anos, continuei pensando em me matar.

Hoje em dia, acho que ter pensado nisso durante todo este tempo foi, na verdade, uma dádiva. Evitou que eu tivesse um espírito iluminado demais, tão iluminado que cegasse a mim mesmo. Evitou que eu achasse que sou peça fundamental no funcionamento do mundo, que um movimento meu é capaz de interferir na rotação da Terra e que, depois de morto, legiões vão citar meus nomes em rodapés de teses na USP. Este pensamento de morte precoce me colocou no meu devido lugar, que é na cama com a mulher amada, por vezes lendo um livro, amando o tempo todo, fazendo planos de viagens ou relembrando os trinta milhões de pontos no fliperama.

Eu tinha uns dezoito anos quando entrei em contato com uma psicóloga pela primeira vez. Eu namorava uma estudante de psicologia à época e, por influência dela, achava que era necessário ter alguém para falar dos meus problemas de adolescente. Neste tempo eu pensava em psicologia nestes termos: estar com alguém para desabafar. Mais: alguém que me desse sábios conselhos.

Era, contudo, um preguiçoso e, em assim sendo, procurei uma psicóloga perto de casa. Encontrei uma na esquina. Não me lembro do nome mas me lembro muito bem do primeiro erro da tal: fazer-me escolher. Ela tinha um consultório em conjunto com psicólogo japonês. E na primeira consulta explicou seu método de trabalho (e não o do japonês que estava na sala com ela) e simplesmente mandou que eu escolhesse entre os dois. Ora, eu estava ali justamente porque não sabia fazer escolhas e a imbecil me manda escolher! Além disso, como eu poderia conviver com o sentimento de rejeição que veria no outro psicólogo para todo o sempre?!

A duras penas escolhi. Ela era uma senhora dos seus 60 anos, recém-formada. Junguiana. Sua primeira lição de casa foi ter me mandado sonhar e anotar os sonhos, que seriam relatados a ela, para então serem analisados. Interrompi o tratamento, por assim dizer, quando comecei a inventar sonhos só para ver que tipo de interpretação ela faria e quando, em determinado momento, ela disse que minha anima era desenvolvida demais e que eu tinha um lado feminino assim e assado e...! Só falta me dizer que sou gay! Nunca mais voltei ao consultório da minha primeira psicóloga.

E veio uma gripe e outra e outra, depois uma esofagite, uma amigdalite, estas coisas cotidianas. Fui a um médico certo dia e ele tinha uma explicação para tudo: depressão. Eu tinha ouvido falar disso, claro, mas achava que era frescura. Até que o médico me deu um folheto de laboratório que continha algumas perguntas básicas que supostamente definiriam o depressivo. Como eu respondera a todas as perguntas afirmativamente, estava claro para mim e para o médico charlatão que eu era um caso terminal de depressão. Passei, a partir deste dia, a tomar antidepressivos.

Não tenho vergonha disso. Acho engraçado, até. Fui, penso, uma vítima, e por longos sete anos, do departamento de marketing de um laboratório farmacêutico qualquer. Não me lembro do nome do primeiro medicamento antidepressivo que tomei, mas sei que não era Prozac. Só sei que o negócio era poderoso mesmo e que me deixava meio zonzo o dia inteiro. A sensação vinha em ondas. Muito legal para um adolescente que nem maconha usava e que tomava um porre aqui e ali, se tanto.

Abandonei o médico um tempo depois. Eu tenho um histórico de abandonar médicos. É uma raça que me cansa, para dizer a verdade. Tenho amigos que são médicos, com os quais me dou muito bem, desde que não me venham prescrever alguma coisa. A inimizade começa com a receita.

E lá fui eu procurar um médico especializado, isto é, um psiquiatra. Como devem saber aqueles que não são idiotas o suficiente, um psiquiatra não trata de dementes. Na verdade, o psiquiatra estuda o comportamento a partir das substâncias químicas que norteiam as sinapses, coisa e tal. No caso de depressão, as substâncias químicas envolvidas são a seratonina e a dopamina. Neurotransmissores, diz-se. É nestas substâncias que atuam os antidepressivos. E os psiquiatras servem para dar receitas azuis para determinados antidepressivos e ansiolíticos, como se verá adiante.

Para minha sorte, fui cair numa psiquiatra que também era psicóloga e que cobrava os olhos da cara. Nesta época, porém, eu já estava gostando de tomar remédios. Os antidepressivos nem tanto; gostava mais dos ansiolíticos que roubava da minha mãe. Que ela não nos ouça, mas eu pegava dois Lexotans e tomava e ficava acordado e via bolinhas coloridas saírem do teto. Muito legal.
Eis que comecei a me consultar com esta senhora, freudianíssima. Não acho que foi de todo ruim. Apesar de eu ainda ter em mente que consultava um psicólogo que me desse conselhos, ali escutei coisas que, em determinado momento, me foram fundamentais. Não entro em detalhes, claro. Abandonei esta médica depois de, certo dia, ter entrado no seu consultório, com boa meia hora de atraso, e tê-la encontrado aos prantos porque o pai, em estado terminal de câncer, estava à beira da morte. Sinceramente, psicólogo que é psicólogo não chora. Muito menos histericamente.

E eis que fiquei um bom tempo se ir a médicos e sem tomar minhas boletas da felicidade. Até que aconteceu uma coisa e outra e outra (todas boas, hoje eu percebo) e acabei caindo nas mãos de uma psiquiatra que não era psicóloga e que era alopata até os dentes. Mandou-me tomar os remédios de sempre mas, vendo que não tinha solução, mudou o diagnóstico. De uma hora para outra eu não era depressivo, e sim bipolar. E lá fui eu, tomar quatro comprimidos diários, além de um para dormir. Outro dia conversava com um amigo sobre isso: eu era completamente controlado por remédios. Até que, depois de um ano, mais ou menos, isso tudo me cansou. Parei de tomar remédios, parei de ir à psiquiatra bonitinha, parei de ir à psicóloga e principalmente parei de ter crises de depressão e euforia. Não é incrível?!

Hoje eu percebo o que me aconteceu com muita lucidez. Eu era literariamente depressivo. Eu descobri muito cedo que ser melancólico era muito mais elegante. E não há mulher que resista, numa certa idade, a um choro convulso ou a uma ameaça de suicídio. Ser assim uma espécie de Werther me conferia status e me deixava mais inteligente. Pelo menos era isso que eu achava. Depois, perdeu a graça.

Durante estes anos todos que tomei remédios e que ia para a cama pensando em morrer, escrevi muita coisa sobre assunto. Coisas boas e coisas não tão boas assim. E coisas muito ruins. Muito ruins mesmo. Meu orgulho maior, contudo, coisa que nenhum uspiano imberbe de colete conseguirá entender, foi ter escrito um texto chamado Está Consumado, já publicado aqui e também no Digestivo Cultural, para o qual eu colaborava à época. Este texto eu o escrevi durante uma crise braba, numa Sexta-feira Santa. E nele expus os motivos pelos quais não me mataria de modo algum. Além de tudo, quis dourar com um pouquinho de intelectualidade o que se passa pela mente de um suicida. A maior recompensa que tive com este texto, um verdadeiro texto de auto-ajuda, foi o e-mail de um sem-número de leitores a me agradecerem (sempre há os espíritos de porco que me xingam, claro) pelas palavras simples mas eficazes. Ah! Eu realmente queria que os idiotas da objetividade que me cercavam (não cercam mais, graças a Deus!) tivessem a capacidade de fazer algo tão desapegadamente honesto. O que é muito, bem sei, para seus espíritos corrompidos.

O Polzonoff

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