29.3.03

Caminhava pela avenida a passos desconexos. Havia deixado sua bolsa no restaurante junto com toda sua história. Seu olhar atravessava os demais transeuntes que não tinham consciência de sua vida. Cada pisada no chão esmagava um pouco mais a vida que levava até então. Não poderia suportar mais ser usada como o capacho de uma lanchonete de quinta categoria freqüentada por trabalhadores braçais e suas botas cheias de lama. Estava cansada. Estava imersa num filme transtornante em que pedia suplicante pelo "Corta" do diretor. Mas não havia o comandante que pudesse interromper aquela cadência carregada de brutalidades e excrescências. Dependia de si mesma.

Fez sinal para um táxi sem ter a idéia clara de para onde iria.

- Boa noite. Para onde vamos?
- Não sei.
- Minha senhora, eu preciso ter um destino.
- Não sei. Sai andando.

E sua cabeça naquele momento estava tomada por uma delicada sensação de que aquele seria o último dia. Lembrava-se dele. Do modo nocivo com que a beijava todas as vezes que lhe arrancava a roupa. Das suas mãos entrando por baixo de sua saia nos elevadores lotados. Do gosto de sua pele. Do cheiro animal que exalava de seus poros machos. Chorava e masturbava-se. Não poderia mais permitir que lhe roubassem a juventude. Chorava e masturbava-se convulsa no banco de trás do táxi. Mas queria que lhe fosse tolhida a possibilidade da escolha. Chorava e masturbava-se convulsa no banco de trás do táxi de olhos fechados. Pensava em todas as vezes que abriu mão de seus desejos e da sua dignidade. Chorava e masturbava-se convulsa no banco de trás do táxi de olhos fechados pensando simplesmente que nunca mais.

O motorista do táxi já havia percebido o que estava acontecendo. Ficou envergonhado em dizer qualquer coisa. Era um senhor de uns cinqüenta anos, cabelos grisalhos, barba por fazer, óculos de aros grossos, fumante inveterado. Casado, sem filhos. Ex-professor de Geografia. O que fazer com aquela mulher ali que chorava sem parar e que dentro de pouco tempo estaria com a vagina em sangue tamanha a violência com que se tocava? Aquilo nunca havia lhe acontecido. Não sabia nem ao menos para onde ir. O taxímetro rodava por ruas mais escuras para que não vissem o que acontecia dentro de seu carro contando vinte centavos por gemido. De repente ouviu a mulher explodir num grito de dor. Achou que ela havia se machucado.

- Está tudo bem?
- Não. Pode parar o carro.
- Minha senhora, esse bairro é perigoso. Está escuro. Posso levá-la aonde quiser.
- Me deixa aqui. Quanto é?
- Foi por conta da casa.

Ele ficou olhando a mulher descer do carro cambaleante sem entender o que acabara de se passar ali dentro. Seguiu seu caminho. Decidira ir para casa. Encontrar a esposa, dormir juntinho. Não lhe contaria do ocorrido. Ela poderia pensar coisas estranhas. Ela nunca confiou nele mesmo. Aquela história só poderia trazer-lhe à tona aquele velho ciúme que já houvera sido razão de grandes tormentos conjugais.

- Velho, passa a carteira.
- Que é isso?
- O Mickey Mouse, vovô. Um assalto, porra!
- Calma, calma. O que você quer? Dinheiro? Toma.
- Rápido, rápido.

Pegou o dinheiro do taxista e se mandou antes que alguém nos carros ali próximo avisasse alguma viatura de polícia. Conseguira apenas sessenta reais. Mixaria. Deveria fazer mais um assalto ainda naquela noite para poder pagar a dívida que tinha com o Minhocão. Sabia que se até duas da manhã não pagasse o traficante seria encontrado na manhã seguinte degolado no Beco da Norma. Ainda faltavam uns cem. De cano guardado na cintura seguiu adiante na avenida. Por que cargas d'água se envolvera com aquela gente? Parou num boteco para tomar um café. Pagaria o filho da puta naquela noite e nunca mais.

- E aí? Já tem o dinheiro?
- O quê?
- O dinheiro, malandro.
- Olha, ainda faltam cem. Mas até o horário combinado vai estar tudo quitado.
- É bom mesmo. Senão você já sabe.

Recebeu do outro uma piscadela marota com gosto de morte. E saiu. Precisava ou de um carrão de janela aberta ou então de algum casal saindo dos restaurantes da redondeza. O sinal fechara. Era agora. O sangue subia-lhe à face e as mãos suavam. Sacou a arma da cintura e chegou ao motorista.

- Passa a grana, grã-fino.
- O quê?
- Dinheiro, cara!
- Calma, olha eu não tenho um tostão aqui comigo.
- Como não, rapaz? Está querendo me enrolar?
- Olha, não tenho mesmo.
- Então chega para lá.

O assaltante deu a volta no carro e deu um tiro na janela. Vidro estilhaçado, apatia das pessoas em volta, puxou a trava do carro e entrou. Apontou a arma para a cabeça do homem.

- Olha, cara, pode fazer o que quiser, mas não me mate.
- Não quero te matar. Vire à direita.

Ele estava com a arma apontada para sua cabeça. Levava o carro para um destino que desconhecia. Nunca houvera sido assaltado. Nunca sentira a vida de um modo tão tênue. Qualquer movimento em falso poderia custar-lhe muito caro. Não desobedeceria a seu seqüestrador.

- Pare aqui.
- Está bem.

O assaltante saiu do carro e deixou-o lá. Poderia fugir. Mas fugir para onde? De certo achariam-no e então seria o fim. Calma. Muita calma. Isso seria um pesadelo que em poucos minutos estaria terminado. Ouviu alguns gritos. Havia alguém que não gostara de saber que ele estava lá. Tiros. Um homem alto e magro saiu de dentro da casinha simples em que o outro assaltante havia entrado.

- Boa noite. Meu nome é Minhocão. Eu sinto muito pelo senhor estar passando por isso.
- Eu sabia que devia ser um mal entendido.
- E foi. Mas não posso deixar o senhor sair assim, sem nenhum pedido de desculpas.
- Não se incomode. É só me dizer como...

Levou três tiros à queima roupa. Dois na cabeça e um no braço. O Minhocão saiu de perto e voltou para o casebre de onde tinha saído.

Pessoas começaram a se juntar ao redor do carro. Inúmeros comentários carregados de dó rompiam o silêncio da noite.

- O que aconteceu?
- Um homem foi baleado. Acho que está morto.
- Ele está dentro do carro?

Ela conhecia aquele carro. Não, seria muita coincidência. Começou a abrir caminho na multidão para chegar mais perto.

- Não!

Era ele mesmo. Aquele que a maltratara, que a usara, que lhe destruiu a crença em si mesma. Que fora tudo. No banco do passageiro havia caída uma foto dela. A que ele sempre levava no porta-luvas.

A polícia já estava lá. E ela de joelhos no chão ao lado de uma poça de sangue.

- A senhora conhecia a vítima?
- Sim.
- É parente?
- Ele era meu pai.

Allons, enfants! Chocados?

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