12.3.03

Ela não tinha ilusões. Bom, não muitas. Algumas pequenas, daquelas bobas, mais esperancas leves que ilusões, você sabe, perder uns cinco quilos, conseguir trocar de carro no ano que vem, ter grana pra matricular a pequena na natação, encontrar uma tinta de cabelo que não a deixasse com cara de avó de alguém, terminar a revisão do livro... mas nada de grandes ilusões, nada disso. Ela não esperava um grande amor. Uma grande causa. Uma flechada no coração. Nada que lhe tirasse o sono, a fome, ou a sensação dos dedos dos pés. A vida era isso aí. Uns dias ruins, uns dias mais ou menos. Mas teve aí um dia. Ah, aquele dia pareceu vir pra mudar todos os outros, pra mudar as certezas, pra alterar rumos. Foi um desses dias que começa com o requeijão espalhando melhor sobre a torrada, o leite sem nata, a menina doce, sem gritos estridentes, o marido calmo e saindo mais cedo, que ela acreditou que ia ser... melhor, talvez? Um pouco menos tolo, um pouquinho só? A falta de trânsito pro escritório, a secretária sorridente, o assistente gentil, o bolo no estômago que sumira, isso tudo não podia ser uma sinal? Já passavam das dez da manhã e ela não tinha tido saudades, nem arrependimentos, nem... que coisa, nem dor. Dor nenhuma. Um sinal cósmico de que tudo ia mudar, ao menos dentro dela, ao menos hoje, só hoje, e depois... ah, depois ela podia virar uma abóbora de novo, e quem é que ia notar a diferença? Claro que não eram sinais cósmicos, claro que não. Quando ela desligou o abajur naquela noite, às onze horas, depois de um dia igualzinho aos outros, ainda teve tempo de pensar, antes de cair no seu sono de Dormonid, que era mesmo uma sorte ela não ter ilusões.

chupado do ¡Drops da Fal!

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