2.3.03

Eu quis muito ter um diário na adolescência. Muitas amigas tinham, era moda nos anos oitenta, mas eu sabia que eu não podia tê-lo.

Sou a mais velha de três irmãos bisbilhoteiros, filha de uma mãe especializada em investigações familiares e engenharia social e de um pai que fazia careta quando me via conversando com meninos na rua. Um diário honesto seria a minha ruína. Eles seriam capazes de explodir o cadeado, passar o serrote na capa ou fazer cópias da chave para que pudessem lê-lo sempre que desejassem.

Eu olhava para aqueles caderninhos rosados com fecho e cadeado e sabia que não daria certo. Afinal, coisas com cadeado foram feitas pra quê? Para as pessoas enlouquecerem tentando abrir, oras bolas!

Não tinha jeito. Na minha cabeça era claro que, em uma família, todos os segredos existiam para serem descobertos. E olha que a minha vida de adolescente nem era tão atribulada assim! Mas como eu explicaria um beijo na boca aos doze anos de idade, conversas sobre sexo aos dez, rala e rola aos quinze, paixões avassaladoras aos quatorze? Não, ninguém merecia saber sobre a minha vidinha, não os meus parentes. E se viessem a saber, não seria em uma versão assinada por mim.

Até que chegou uma época em que as coisas ficaram muito complicadas para o meu lado. Eu estava de namoradinho novo e o único lugar que tínhamos para namorar era no ponto de ônibus, depois da escola. Passava um ônibus, dois, três e, quando eu chegava em casa, já tinham acionado todos os hospitais, delegacias e todos os S.O.S. dos desaparecidos da face da terra. Era um sufoco me explicar todo santo dia e era lógico que o meu repertório de desculpas se esgotaria antes que eu pudesse completar um ano de namoro. Mas eu tive uma idéia brilhante e tratei de colocá-la em prática: Fui à papelaria no dia seguinte: comprei um diário cheio de frufrus e Ursinhos Gummy, com um cadeadão de guardar intimidades cabeludas e comecei a escrever no mesmo dia.

Horas e horas escrevendo deitada na minha cama, sentindo os pescoços se contorcendo por cima de mim, os olhares de rabo de olho à procura de um trechinho, que fosse. Logo eu não teria mais problemas; assim que a curiosidade lhes consumisse, eles dariam um jeito de ler os relatos do meu querido diário.

Nunca soube ao certo se eles leram. Uma família que se preze não bota na banca os segredos da casa - os usa em beneficio próprio.

O que eles nunca souberam é que tudo o que foi escrito foi maquiavelicamente tramado pela minha mente adolescente do mal. Não que eu fosse uma menina má, não que eu não gostasse deles, muito pelo contrário, mas dividir o mesmo teto é a melhor forma de ver o que há de pior em alguém e dar uma banana para o que realmente importa. Era só escrever diferente!

As verdadeiras histórias com o namorado eram escritas em supostas horas dedicadas à leitura na biblioteca do colégio. Minha implicância com meus irmãos xeretas magicamente era descrita no meu diário como o mais puro sentimento de culpa de uma irmã que não conseguia manifestar o carinho que tinha por eles. Meu desespero sobre como driblar a vigilância dos meus pais se transformava em textos de tristeza, onde eu, muito magoada, relatava minha indignação pela falta de confiança que eles tinham em mim - um verdadeiro exemplo de bom comportamento e amor à família. E ninguém me encheu a paciência por muito tempo... Até me levavam a toalha, quando eu a esquecia na hora do banho!

O namoro durou seis meses, o diário também. Os bons tratos acabaram um pouco antes... Era previsível. Em família, até as declarações de amor precisam de limites. Aquilo era um exagero! Mas foram quase seis meses de paz e sossego no meu lar, doce lar.

AMARULA COM SUCRILHOS

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