8.3.03

LES BLEUS ME BOTEUX NU CUS

Pode haver coisa mais fascinante para um brasileiro emigrante, fanático por futebol e louco por zoadas do que a possibilidade de assistir à final de uma Copa do Mundo com a presença do Brasil? Não. Parecia um sonho e realizá-lo seria tarefa dificílima, uma vez que praticamente não havia ingressos e os poucos que ainda restavam se encontravam na mão de cambistas, que pediam alto pra cacete pra liberá-los. Quando já estava por desistir, surge a Charlotte.
Em Freiburg, costumava ir a um bar chamado El Bolero quase todas as noites. Era a minha segunda casa lá. Era também o ponto de encontro do meu pessoal. Naquele sábado, véspera da grande final da Copa de 98, dei uma passadinha no bar pra tomar uma cerveja e assistir ao jogo que decidiria quem iria ficar em terceiro lugar, Holanda ou Croácia. Minha desilusão era enorme, afinal Freiburg fica a uma distância pequena de Paris, é como do Rio a São Paulo. No meio do jogo chega o Sérgio, parceiro daqui de Copacabana e que está na Europa há uns dez anos. Logo depois dele vem o Jorge, argentino de Buenos Aires, fanático torcedor do River Plate e gordo feito uma leitoa. Mais até que o Fred. Todos estávamos morrendo de vontade de ir a Paris, mas sem carro, sem grana e, principalmente, sem ingresso, era impossível. É quando chega a Charlotte, uma húngara que trabalhava como garçonete no El Bolero e também uma grande amiga de zoadas pelas noites de Freiburg. Sabendo que ela tinha carro, o Sérgio, completamente despretensioso, perguntou: "Então, Charlotte, vamos pra Paris curtir a final?". Qual não foi a nossa surpresa quando ela, de prima, sem sequer tirar os olhos das bebidas que nos servia, mandou: "Vamos sim. É só vocês me esperarem até o fim do meu expediente. Alvoroço na mesa. E ela estava mesmo falando sério? Estava sim. Fomos todos em casa buscar umas coisinhas e pouco depois já estávamos de volta ao Bolero, cada um com sua respectiva mochilinha. Na minha, além de itens básicos como escova de dentes, fio dental, cuecas e desodorante, iam também uma bandeira do Brasil, camisa, as minhas calça e cueca da sorte, o boné e, como não poderia deixar de ser, uma imagem de São Judas Tadeu, o padroeiro das causas impossíveis e, mais importante do que isso, do Flamengo também.
Charlotte pediu que a esperássemos em frente ao bar enquanto ia buscar o carro. O êxtase era total. Passa um carrinho todo fodido e pára um pouco a nossa frente. Continuamos esperando. Segundos após, uma frenética Charlotte desce daquilo que mais se convém chamar apenas de meio de transporte e começa a gesticular nos chamando pra entrar.
Não tinha a menor condição de a gente ir pra Paris naquilo. O carro era um FIAT menor do que o minúsculo e desprezível FIAT 147. O motor, como no Fusca, ficava na traseira e na mala mal cabia a mochila do Jorge. Aliás, no carro mal cabia o Jorge, que devia pesar uns 140 kg. Mas aquela era a nossa única chance. Entramos eu e Sérgio atrás e deixamos o momo do Jorge ir na frente. Combinei com o Sérgio que a cada parada iríamos trocar de posição, pois quem se senteva atrás do argentino ficava todo espremido. E assim fomos.
O carro era horrível. Barulhento, apertado, velho pra caralho, o motor esquentava tanto as nossas costas que parecia que iria cozinhar os rins da gente. Pior ainda era que o desgraçado não passava de 80, o que aliado a nossa pouca intimidade com o percurso e ao fato de o tanque só pegar 20 litros de combustível, o que nos obrigava a parar a cada 100 metros, fez com que uma viagen de no máximo cinco horas durasse nove. Isso sem falar no Sérgio, que com 42 anos na altura, pedia o tempo todo pra garota dar uma encostadinha e ficava fazendo alongamentos na beira da pista. Logo que cruzamos a fronteira tivemos o primeiro indício de que aquela viagem ficaria marcada na vida de todos nós. O motor esquentava muito e a solução que encontramos pro problema foi levantar a tampa traseira e, assim, permitir que o pobre diabo "respirasse". Quando faltavam ainda umas três ou quatro horas para que chegássemos, a Charlotte pediu pra alguém dirigir, pois ela estava exausta. Como dos três eu era o único que podia, já que tanto o Sérgio quanto o Jorge eram emigrantes clandestinos, passei para o volante. Percebendo que a Charlotte havia apagado no banco de trás, resolvi pisar um pouco mais forte no acelerador. Consegui botar 110 km/h na descida e com o bichinho gritando. O ponteirinho batia no pininho do velocímetro. O Jorge falava pra mim: "Cuidate, hombre. El cochesito no resiste. Es mucho gas, Fabiano. Mucho gas.". Mandei ele ficar quieto e continuei tocando o pau. Chegamos, enfim, à Cidade Luz e tão logo pegamos o viaduto que nos levava ao centro, o motor estourou. Era fumaça pra tudo quanto era lado. Principalmente no lado de dentro do carro. Não via nada. O Jorge gritava, o Sérgio evocava umas entidades de Umbanda e a Charlotte dizia um monte de coisas que eu não entendia, pois falva em húngaro. Com muito custo e após inúmeras buzinadas consegui levar o carro até um posto. De lá fui com o Sérgio até a Gare de Lyon, que é a Central do Brasil deles, enquanto o Jorge e a Charlotte cuidavam do carro. Minha intenção era ligar pra um casal de portugueses amigos meus que moram nos subúrbios da cidade. Quando retornarmos ao posto, nos deparamos com uma cena ímpar. Um bando de frentistas, todos com cara de árabes, rodeavam o carro e ficavam admirando a Charlotte deitada no chão, consertando o motor. Enquanto isso, o obeso do Jorge se limitava a passar as ferramentas que ela pedia. Uma vergonha para a raça masculina.
Quando o Manel chegou não podia acreditar que tínhamos ido de Freiburg a Paris numa merda daquela. Fomos pra casa dele, tomamos um banho, comemos, bebemos umas cervejas e partimos pra Champs Elysées, onde se concentrava mó galerão pra acompanhar os jogos. No metrô, conhecemos três gerações de uma família de sergipanos que há muito está fora. Eram a avó, a mãe e uma filha que era um espetáculo. Moreninha, olhos verdes, um rosto de miss e um corpo de dançarina de axé. Vestia-se com um shortinho todo enfiadinho verde e um top amarelo que deixava à mostra as marquinhas do biquini. A cereja do bolo era o sotaque franco-paraibinha que ela tinha adquirido por viver há mais de 15 anos na França, sendo que, na época, ela devia ter uns 18 ou 19 aninhos. Ela contou que saiu do Brasil ainda antes de completar um ano de idade e viveu em uma série de outros países até ir pra lá. O pai da gostosa era diplomata e por isso viajavam tanto. Ela só não estava morando em Ruanda com a família porque tinha acabado de entrar pra faculdade. Sendo assim, ficamos coleguinhas rapidamente e decidimos assistir ao jogo juntos.
Bom, não preciso dizer que o jogo foi uma merda pra nós e que a francesada sacaneou a gente pra caralho, né? E ainda tive que ficar aturando o Carlos, primo do Manel, e um bando de africanos loucos fumando haxixe na nossa frente. Nem o terceiro gol eu vi. Já estava longe, curtindo com a minha franco-paraíba. Azar no jogo...
A volta pra casa foi ainda mais problemática. A Charlotte não me deixou pegar no carro de novo e se perdeu na saída de Paris, levando a gente quase que pra dentro da EuroDisney. Percebi logo que vi o Mickey que estávamos na direção errada. Resultado: a volta durou longas 11 horas. Au revoir.

Tatu

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