Ontem disse que voltaria com a rotina normal. Não dá para se ter uma rotina normal, vivendo no limite. Irei morrer em breve, e surpreendentemente, isso não me assusta. Deprime, alegra... É um lugar comum falar que há uma alternância de emoções, mas é o que está acontecendo comigo.
Estou fazendo o tratamento. Sempre há um otimista para me dizer que com ele viverei mais um tempinho, como se eu estivesse em um jogo empatado, e fosse para a prorrogação. Ora, o grande problema é o gol de ouro, que acontece quando menos se espera... E, além do mais, meu jogo não está empatado, porra. Prorrogação que nada. Eu sei que morro, sei que é breve, portanto deixem-me em paz.
E uma lucidez. É impressionante a lucidez que se instaura com a proximidade da morte. Mas hoje estou cheio de chavões, e, apesar de gostar deles (ora, nenhuma frase feita o é à toa), não quero cansar vocês.
De volta, pessoal. Eu, meu gato, meu Marlboro, e esse maldito caroço. E dói. Muito. Muito mais na minha cabeça, é claro. Mas já antegozo a morfina.
(...)
Assisto com olhos impassíveis toda essa movimentação de guerra, e daqueles que são contra ela. Para mim, isso não importa mais. Com guerra, ou sem ela, com Bush ou sem Saddam, a minha vida está acabando, e isso é mais certo do que qualquer guerra.
Em minha juventude, eu costumava me indignar com esse tipo de coisa. Até a Guerra do Golfo, onde mandei cartas exaltadas para jornais e representantes do governo. Mas a proximidade da morte me leva a pensar: de que adiantou? As guerras continuaram sendo travadas, e pelos motivos mais bestas possíveis. Todos morrem, todos os dias. Hoje há mais de quarenta guerras sendo travadas em todo o globo, guerras por religião, por comida, por terra. O forte matando o fraco, sempre. E o fraco morrendo, todos os dias, em esquinas, praças, apartamentos duplex ou mansões nos Jardins. Sempre a mesma merda, a gente luta, se revolta, dá cestinha de natal, e não muda nada. E agora sou eu que estou morrendo, portanto, que se danem Iraque, EUA, e toda a merda envolvida nisso.
Só o hoje me interessa, e as pequenas coisas do dia a dia mais do que nunca, agora. Quero vomitar menos, quero que o gato não me encha o saco, e o telefone pare de tocar com gente do outro lado que nào me vê há tempos perguntando: "você está bem?" Estou ótimo, morrendo de câncer, careca e com uma dor constante, imbecis. Quero que me deixem em paz, só isso. Aliás, essas ligações de piedade me fazem vomitar. De novo.
Outra coisa que me irrita é essa falsa religiosidade que envolve os que estão para morrer (ora, todos nós estamos. Vocês também estão para morrer. Só que eu tenho data prevista. E sem período de carência). Parece que Deus é algum nome de remédio, as pessoas passam a vida inteira sendo más, e, perto da morte, se arrogam o direito de serem religiosos. Ora, nunca fui santo, e muito menos religioso. Não gosto de igreja, de templo, de centro, de nada disso. Não vai ser agora que eu vou me dar a essas folclorices e esperancices. Não, obrigado. Não achem que é um bom momento para me venderem o Deus de vocês, não o quero. O único deus a quem prestei homenagens a vida inteira foi esse que está aceso entre meus dedos. E ele me fudeu.
No mais, obrigado pela visita, e pelos comentários. É de certa forma confortante saber que vocês ainda estão aí.
dito pelo Canceroso
4.4.03
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário