10.4.03

Sempre que passo o tempo contando os grãos do meu relógio de areia eu lembro de que poderia estar fazendo algo mais interessante do que pensar que uma bananeira pode alimentar cem pessoas, que o mundo é redondo mas meu olhar viaja em linha reta, que biri quer dizer cigarro na Bahia, que a mente é um loop infinito, que quase todos os terapeutas confundem identificação projetiva com transferência, que os vietnamitas usavam enxames de abelhas para combater os pelotões americanos, que preciso ler Slavoj Zizek, que querem me convencer de que tenho "desafios" e não "problemas", que eu também não tenho coragem nem para matar uma muriçoca, que me apavoram os giganotossauros, que nas minhas vidas passadas não havia escada rolante nem ar-condicionado, que eu não gostaria de trabalhar na Barra, que como eu disse antes eu nunca me repito, que o amor ah o amor, que tenho saudades do cinema Caruso, que eu detesto que me chamem de tia só porque não tenho 15 anos, que eu não saberia nunca provar que os números primos são infinitos, que eu precisaria de uma bunda célebre para sentar-me numa banheira de ônix, que os abetos do Himalaia não são como os daqui, que eu gostaria de ouvir o som de uma harpa eólica, que eu devia aprender a fazer um café mais forte, que eu nunca vou poder comprar um piano Biedermeier, que eu deveria saber apreciar outros pintores além de Munch, que eu desconfio da gramática e detesto teleprofessores, que a medicina só cura enfermidades curáveis, que você poderia pôr mais azeitona na minha empada, que preciso esquecer desta história de criar uma língua só de vogais, que adoro cheiro de gasolina, que gosto sim de intimidade doméstica mas meu cobertor primeiro, que perdi orgasmos fantásticos por não saber que era masoca, que o mundo é mais do que a totalidade dos fatos, que Deus é uma questão de lógica pessoal, que tem um mosquito me encarando do outro lado da janela, que nunca passei pela rua dos Retroseiros mas meu sonho de consumo é uma Tabacaria, que os genes são imortais e que no fim das contas a verdade não importa porque os grãos pararam por aqui e estou cansada demais para virar a ampulheta.

página da Prosa Caotica

Nenhum comentário: