24.4.03

Viro o resto da cerveja quente no bico, tomo tudo. Solto um arroto e atiro a garrafa em direção ao cesto. Ela solta um gritinho agudo e se aninha junto às outras sete companheiras.

"Preciso parar de beber". Rio alto da minha própria afirmação. Venho me prometendo isso há ... bom, já perdi a conta, mas a forma esférica e inchada que minha barriga adotou pode atestar que já faz muito tempo.

Paro por um instante e observo as marcas de gordura e sujeira no teto. Estou pensando seriamente em contratar uma faxineira. Sempre achei que cuidar de uma casa seria baba perto do que eu já fiz. Acho que estava enganado.

Às vezes eu simplesmente saio do ar. Como agora. Tenho a impressão de que fiquei apenas um minuto ou dois observando o teto, mas afinal percebo que a manhã já passou e o fim da tarde se aproxima, e só agora me dei conta de que estou aqui parado.

Arrasto minha bunda até a beira da poltrona velha de couro. Me apoio em seus braços e com um gemido me levanto. Puta que pariu! Como minhas costas doem.

Calço minhas pantufas e caminho trôpego até a cozinha. Uma porrada de panelas se acumulam sobre a pia. O cheiro de comida azeda me causa enjôos mas não tanto quanto a idéia de limpar aquilo tudo. Resolvo deixar como está. Vou até a geladeira velha com a pintura azul celeste descascada e abro com cuidado. Essa porcaria anda dando choques. Pego mais uma cerveja, e com um gole destruo mais uma promessa.

Vou andando até o terreiro com a garrafa na mão. Uma velha figueira toma conta da maior parte do diminuto quintal. Vários vasos de bonsai e uma espreguiçadeira velha tratam de ocupar o resto do espaço.

Pego um vaso de cor preta e me sento . Coloco-o num caixote de laranja improvisado como mesa à minha frente. Trata-se de uma Jaboticabeira. Um belo exemplar. Eu a podo cuidadosamente com um alicate apropriado para o corte. Ele possui o fio mais agudo e afiado, evitando que os galhos sejam amassados no ato da poda. Dou um trato nela por umas 2 horas até que consigo o resultado esperado. Recoloco-a em seu lugar e busco mais uma cerveja na geladeira.

Ligo a TV e me jogo na poltrona fazendo-a estalar. Pego o velho controle remoto no formato e tamanho de um tijolo e começo a procurar algo decente pra se ver.

TIC!

Um casal de jovens choram abraçados um ao outro com um papel na mão. Ele parece tentar persuadi-la a fazer algo. Ela parece relutante mas é clara sua fraqueza. Ela logo vai ceder. Depois de mais 5 minutos de choro e promessas do rapaz ela finalmente concorda. Agora eu percebo, eles estão numa clinica. Ela entra numa sala de onde, 10 minutos depois, sai vestida com um avental azul, carregada numa cadeira de rodas.

Esse casal tirou o primeiro filho que foram capazes de gerar juntos.

TIC!

Um garoto segura uma mulher ao menos 20 anos mais velha que ele pelos cabelos e a puxa em direção à cama. Ela resiste mas parece gostar. Ele a atira com força e a esbofeteia no rosto quando tenta se levantar. Ela chora e ele levanta sua saia com força. Rasga sua camisa e puxa seu sutiã. Seus seios são firmes e ele os chupa com voracidade. Ela segura sua cabeça e a força ainda mais contra eles. Ele abre suas pernas, puxa sua calcinha para o lado e a penetra com força. Ela solta um grito. Ele fode com força fazendo gritar cada vez mais alto.

A porta se abre. Um homem entra armado. Dá um tiro no garoto que cai morto encima dela. Ela fica atônita por alguns segundos. Olha pro marido com a arma na mão e pro filho morto, com o pau dentro dela.

Ele atira de novo. E de novo. Ela para de gritar.

Mais uma vez.
Ele cai.

TIC!

Dou um belo gole na cerveja enquanto assisto um jovem trancado em seu quarto. Ele acende uma vela e tira do bolso uma pedra branca, semelhante a um sabão esfarelando. De baixo da cama ele puxa uma caixa de sapatos e de dentro dela retira uma seringa, uma colher e uma borracha. Coloca um pedaço da pedra na colher e a põe sobre o fogo da vela. Espera pacientemente até que derreta. Suas mãos tremem. Ele obviamente está sob efeito de álcool ou outras drogas, ou ambos.

Depois de derretido ele despeja todo o conteúdo dentro a seringa. Amarra a borracha no braço e sem procurar muito se pica. Cai instantaneamente para trás, batendo com a cabeça no chão e entrando em convulsão. Como se fosse ensaiado, alguém começa a bater freneticamente na porta. Ele baba. As batidas aumentam de força. Seus olhos viram, ele treme muito. Começam a chamar por ele. Sai sangue de sua boca.

Arrombam a porta e entram. É seu pai e sua mãe. Eles o encontram morto.

"Meu Deus!!!! Meu Deus!!!! " eles gritam.

TIC!

Não me perdôo por ter sido tão ingênuo e tão estúpido em tentar criar a perfeição. Me angustia ver minha própria criação se destruir e não poder fazer nada. Me sinto de mãos atadas. Minha tesoura não serve para podar seus galhos. Não posso lhes ajudar a tomar a forma correta.

Só me resta assistir.

Me levanto, pego mais uma cerveja e volto aos meus bonsais.

Cacofonia zapeante

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