6:14 Por que não fechei as janelas ontem? Devo ter desmaiado de sono. O frio desceu as paredes, umedecendo o relógio digital sobre o criado-mudo. Metade do lençol escorregou para o chão, a outra parte cobre o meu corpo empapado de um líquido viscoso gelado. Não consigo me mexer, minha cabeça dói e este cheiro adocicado invadindo o quarto.
10:58 Acordo com dificuldade e me apresso para o chuveiro. Imagino um dia cheio à minha espera. O celular sobre a pia também espera que eu o atenda se tocar.
11:30 Não tocou. Eu é que o confundi com o bipe do microondas. Se fossem parecidos.
12:15 Teclo o controle remoto da TV sem parar. Dentro da geladeira os tomates mofaram. Uma folha de alface murcha. Duas latas abertas de cerveja, sete ovos e um queijo ressecado. Água. Água. Água.
13:30 Agora o celular toca. Não, não conheço nenhuma Dona Concheta.
14:00 Recarrego a bateria do celular e bato duas carreiras meladas.
14:45 O porteiro eletrônico soa na cozinha. Estou esperando alguém?
15:11 Avisto na estante "O futuro dura muito tempo". Vejamos o que me diz a página 110.
15:37 Corto as unhas dos pés. O ponteiro dos segundos bate dentro do relógio de pulso.
17:02 Assisto a "Limite" pela terceira vez nesta semana. A garrafa de Black&White que achei na despensa acaba 12 minutos antes do filme.
20:13 Tiro a poeira dos livros. Primeiro os dicionários. Por último biografias. Dou um polimento numa edição rara de "O retrato de Dorian Gray". No fundo de uma gaveta fotos da época da faculdade. Meus amigos cheiram a sachê. Éramos tão magrinhos. Comprimidos de Lexotan misturam-se com bolinhas de naftalina. Há quanto tempo não ouço os canhões de Copacabana?
21:15 Uma calculadora arriada. Postais. Uma página de Scott Fitzgerald. Mapas da cidade. Agendas velhas. Facas Olfa enferrujadas. O que isso está fazendo aqui?
21:29 Coloco a automática sobre o criado-mudo. Esqueci que era tão pesada. Por que começo a tremer logo agora? Tiro-a lentamente de dentro do saco de pano e a manuseio com cuidado. Esqueci que era tão bonita.
21:45 Destravo o pino de segurança e levo o cano à cabeça. Posição de disparo. O dedo fora do gatilho. A boca do cano tem o diâmetro de minhas órbitas. Faz calor aqui. Deslizo o cano pelo meu rosto, pescoço, peito, barriga, coxas. Meu pulso lateja com a pressão da arma. O celular toca. Um mosquito pousa em minha perna. Coloco a S&W sobre a cama e o mosquito se assusta. Sinto sono e me deito ao lado da arma. Antes de adormecer puxo o gatilho.
Prosa Caotica
3.5.03
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