Auto-crítica
“...um ornitorrinco que, ao vê-lo, sorri, tira o chapéu e diz ‘Posso usar o seu banheiro? É uma emergência!’
Ao terminar de digitar, o velho autor, satisfeito, salva o texto e se prepara para mandá-lo ao jornal. Quando ia clicar em “Enviar”, ele ouve um som de “Puff!” atrás de si e uma mão feminina arranca com força o mouse de sua mesa, ao mesmo tempo que grita:
- Eu não posso deixar você fazer isso!
Nisso o autor vira e vê uma mulher seminua, de lingerie preta, cabelo armado, baton vermelho nos lábios e mascando chiclete. Era a versão mais próxima do real que ele já vira da mulher de seus sonhos na época de adolescência, uma mistura de Jane Fonda com Brigite Bardot, mas sem dúvida - ele reparara uns dois segundos depois - com os quadris da Marta Rocha.
- Quem é você?
- Pára de salivar, fecha a boca e presta atenção no que eu vou te dizer: você não pode publicar isso! Aperta o delete, vai em arquivo/novo e começa essa tua crônica de novo.
- Peraí, como você sabe o que escrevi? Quem diabos é você?
- E não está na cara? Com que idade você começou a escrever?
- 14 anos, por quê?
- E quem era a mulher dos seus sonhos, tua musa?
- Haaaã... é, algo parecido com você. Não acredito! Você é minha inspiração?!?
- Cai na real! A tua inspiração é uma velha esclerosada que só sabe tricotar e assitir novela mexicana. Aquela lá não sai da cadeira de rodas nem por decreto. Eu sou a tua auto-crítica!
- Ah, tão chata, logo vi... Então é você que todos esses anos me atormentou, instigou minha insegurança, fez-me recusar os prêmios e elogios?
- Eu fui apenas sincera. Admita: você é mediocre e pronto. Fez uma ou outra pessoa rir, teve um punhado de comentários inteligentes, acertava uma ou outra frase de efeito no meio de tanta bobagem mas, resumindo, não chega aos pés de um Sabino.
- É bem típico de você mesmo, sempre querendo me comparar com os Sabino’s ou LVF’s da vida. Típico, típico! Invejosa!
- Longe disso, só faço o meu trabalho. E é o que estou fazendo agora. Você não pode publicar uma coisa dessas. Que cronista de respeito que você conhece que usa “ornitorrincos” como personagens?
- Pára de me comparar, a crônica é minha! Se eu quiser por um animal qualquer eu ponho, se eu quiser por um outro animal de férias no sul da Argentina eu ponho, se eu quiser por aparições surrealistas eu ponho, se eu quiser por mulheres seminuas eu ponho! E não são “ornitorrincossss”, mas sim um só. Meu personagem aparece no singular, só uma vez... não é nenhuma convenção de ornitorrincos!
- Não é este o ponto. Acontece que se você publicar isso aí vai cair no ridículo de vez, vai ser motivo de chacota, vai virar objeto de estudo em universidades de “como não se deve fazer”, vai estar com foto colorida ao lado do verbete “idiota” na próxima versão do Houaiss.
- E você faz agora o que sempre fez, né? Sempre me desestimulando, sempre sendo do contra, me comparando. Foi você que acabou com toda a educação liberal que meus pais me deram. Enquanto meus amigos sofriam com suas culpas, eu sempre fui uma criança livre, desenvolta, até os... 14 anos! Você... você que maculou minha formação.
- Não exagere. Eu apenas seleciono. E se não fosse por mim, você teria mandado aquela sua história sobre uma colônia de férias de sapos na patagônia para o seu primeiro editor. Um horror, teria acabado com todas as suas chances, nunca teria publicado um livro.
- Mas eu publiquei essa história depois e ganhei um prêmio.
- Júri mal escolhido, isso sim. A história é ruim: eu sei, você sabe. Essa agora, do ornitorrinco, é pior ainda.
- Você sempre me irritou, me dominou! Mas dessa vez eu não vou deixa barato! Vou publicar a história. É só apertar “Enter” que tudo estará feito! Hahahaha.
Nisso a Auto-crítica empurrar o autor para longe, enfatizando:
- Só por cima do meu cadáver!
- Não seja por isso!
Acumulando anos de raiva, pensando no seus sapos em plena patagônia, o autor pula em cima da Auto-crítica e começa a apertar a o seu pescoço.
- É hoje que eu durmo sem pensar se a crônica foi boa ou não, é hoje! E aperta o pescoço dela ainda mais forte.
A moça começa a ficar vermelha e, tossindo, dá o seu grito de rendição:
- Ok, ok, cof, eu desisto, pode publicar, cof cof.
- Agora é tarde! Não perco a chance de me livrar de você por nada desse mundo!
- Eu desisto, eu desisto!
E esticando o braço, a Auto-crítica consegue digitar o enter no computador. Nessa mesma hora a campainha toca, o autor solta o pescoço dela e se dirige à porta. Quando ele abre, encontra parado à sua frente um ornitorrinco que, ao vê-lo, sorri, tira o chapéu e diz:
- Posso usar o seu banheiro? É uma emergência!
zazoeira
19.5.03
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