19.5.03

Em uma de minhas cenas imaginárias, eu falo tudo como quem devolve da boca um doce com gosto estragado. Eu grito prá não deixar dúvidas, não ter mais volta, restar mais nada. Você sequer consegue pensar em me interromper mas mesmo que quisesse não teria voz. Eu pareço uma louca. Estou. Cada palavra é uma arma cuspindo balas certeiras prá te machucar. E sem me calar por um minuto saio derrubando os móveis e batendo a porta. Irada, alterada mas semi morta.

Na outra cena eu aparento uma calma desconcertante. Falo serena e tão baixo que eu mesma quase não me escuto. Mas você ouve tin-tin por tin-tin, ipsisliteris, de A à Z. Você entende claramente cada sílaba do que eu digo como uma faca afiada prá te ferir. Você até ousa me interromper mas eu não cedo lugar ou espaço, continuo falando sem alterar a voz, sem desviar meus olhos dos seus, sem me mexer do lugar. Depois saio devagar e sem bater a porta. Aliviada, leve mas quase morta.

Na cena real é tudo diferente. Você fala demais, puxa coisas antigas demais, se coloca demais. Verbaliza o que provavelmente se arrependerá depois e se diz melhor do que nós dois sabemos que é. Eu ouço calada, olhos secos, alma calejada. Você parece um disco quebrado e eu, uma boneca inanimada.

Nas minhas cenas imaginárias eu roubo seu texto e faço dele um espetáculo. Sua figura é patética. Mas na cena real, veja bem, tudo o que eu pensei, tudo o que eu senti e, principalmente, tudo o que eu não disse são apenas suposições na sua cabeça. Sua figura é atormentada. O meu silêncio frio e calculado vai acabar te intoxicando - por refluxo. Então, eu saio cuidadosamente e encosto a porta. Altiva, vingada e muito bem, obrigada.


[estas são cenas de ficção, qualquer semelhança com fatos reais é mera condescendência]

Cenas da Afrodite sem Olimpo

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