6.6.03

A casa

Era uma experiência. Uma espécie de Casa dos Artistas – sem câmeras e sem artistas. Apenas eu, Estela e meu gato, naquela casa de janelas altas e corredores longos. Parecia um bom lugar. Desfizemos as malas, consertamos o chuveiro, distribuímos beijos de boa sorte e boa noite.

Logo de manhã percebi que algo estava errado. Acordei na sala de jantar – eu havia dormido no quarto. Levantei e chamei Estela. Estela estava enrolada no lustre. Era um lustre grande, mas e daí?

Peguei a escada e acordei-a.

- Que diabos está havendo?

Estela desceu, ainda sonolenta.

- Você me colocou no lustre?
- Eu? Por acaso você me colocou em cima da mesa de jantar? O lustre é muito mais confortável do aquela maldita mesa redonda. Pelo menos não bate vento.
- Claro que bate.

Em vez de café da manhã, tomamos chá. E na hora do chá, tomamos café da manhã. Não só isso. Jantamos durante o almoço e almoçamos durante o jantar. Estranho, muito estranho.

No outro dia, acordei de ponta-cabeça, dentro do armário. Estela estava ao meu lado, pendurada em um cabide. A sala estava na cozinha, a cozinha estava na garagem, a garagem estava no banheiro, o banheiro tinha simplesmente desaparecido.

Os cômodos mudarem de lugar não era nada. A casa começou a mudar de número, depois de rua, de bairro... Quando dei por mim, estávamos morando em Mogiguaçu. Eu nem sabia onde diabos ficava Mogiguaçu.

Não demorou muito e o meu gato se transformou em cachorro. Pior! Em poodle, em um maldito poodle. No lugar do meu equipamento de alpinismo, surgiu uma cesta de piquenique.

Estela só aceitou apertar o botão de alerta vermelho, de pânico total, quando vestiu seu vestido-longo-preto-caro-decotadíssimo, foi se olhar no espelho e voilà: um avental de flanela cobria-lhe o corpo.

Finalmente deu-se conta de que a coisa havia passado de todo e qualquer limite.

Resolveu trazer sua mãe para morar conosco. A velha jurava que podia dar um jeito na casa. Dizia já ter morado em lugares muito piores. Eu avisei que aquela casa não era um lugar adequado para mães. Além do mais, o combinado era só nós dois – e o gato, ou cachorro. Quem Estela pensava que era? Deus? Silvio Santos? Estela não me ouviu. A simpática mãezinha expandiu-se em dezenas de simpáticas mãezinhas. Passavam o dia a tagarelar entre em si. Uma perpétua convenção de mães.

Convenci Estela de que precisávamos contratar parapsicólogos. A convivência com eles me acalmou um pouco. Noites inteiras tomando cerveja, dando risada e jogando pôquer. Estela, ao contrário, passou a detestá-los. Eu os defendi. Brigamos. Estela atacou a parede em um abajur.

Os parapsicólogos insistiam que a nossa casa era normal, normalíssima.

Como vocês explicam o pudim feito de pedra? eu perguntava.

Eles riam.

Como vocês explicam as duzentas e trinta e sete toalhas molhadas? Estela perguntava.

Eles riam.

Acabamos por trancá-los no sótão, que na verdade era o porão, e eles passavam a noite a me chamar fantasmagoricamente:

- Mááááá-ri-oooooooo, Mááááá-ri-oooooo!


A única solução era mudar de casa. Continuar a experiência em outro lugar. Mudamos. A casa foi junto.

Então um dia, ao sair de um demorado banho quente, Estela viu uma criança surgir em meio ao vapor. A criança disse:

- Mamãe!

Estela gritou. Fui correndo socorrê-la.

- Papai!

Na porta do boxe, a criança havia desenhado com o dedinho um coração todo torto.

Foi aí que compreendemos.

Havíamos nos casado.

poltergeist do FDR

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