25.6.03

"Não são os tempos mais alegres que deixam as melhores lembranças, mas os tempos mais intensos." - Antônio Callado.

"Do you miss me, Miss Misery, like you say you do?" - Elliott Smith.


O professor de inglês

Por trás do vidro fumê adivinho o que eles vêem. Nada, atrás de nada. Sinto que desse jeito não vai. Trabalho, uma pilha pra corrigir, mas não consigo. Um terço da manhã pensando na cidade vazia essa época do ano. Como é que devia estar, doceira na praça à noite ainda? Os mais novos rodando, rodando aquela roda onde nada acontece, e os velhos sentados nos bancos de cimento que a prefeitura dá de presente. Nunca se faz nada por aquele lugar. E aqui é tudo espelhado.

- Fabiano, Fabiano... vai aonde todo bonito?

E me deu um beijo na cabeça. Muito diferente, nunca tinha me dado beijo, nem no rosto, nunca nenhum, só um puxão no braço uma vez, subindo o morro, pra eu não pisar na merda.

- Estudou pra prova?
- Que prova? - Ela vivia esquecendo e eu, que era de outra série, decorava o calendário colado na porta da sala de aula. Eu cobrava. Era minha coisa superior.
- Inglês.
- Eu sei tudo de inglês, não preciso estudar. Leio revista americana. Meu primo trouxe. - Ela tinha esse tal de primo de São Paulo, aparecia pra passar lá o Natal. Chegava cheio de novidade.

- Burra, revista não é aula.
- É muito melhor, palhação.

Burra, palhaço. A gente cresce e se torna cada vez mais o que é. Só que ela nunca foi muito burra.

- Nem agradeceu o elogio.

Sacudi a cabeça porque palhação não era elogio.

- Bonito.
- Que que é bonito?
- Você, eu cheguei e disse que você tava bonito.

Meu silêncio.

No dia do morro e do cocô, me deu um puxão e eu aproveitei pra encostar nela. Fez que não sentiu. Uns dias depois me beijou no alto da cabeça. Eu não sabia se estava cheiroso, mas como ela não disse nada, nem que cheirava bem nem que fedia, eu também não perguntei. Só disse que eu era bonito. Cada vez mais maluca, cada vez mais maluca, era o jeito de São Paulo que pegava com o primo, eu achava o cara besta. Sabe dois vinténs de uma coisa e se garante nisso o resto da vida.

- Vontade de comer jabuticaba. - Todas as minhas camisas manchadas de roxo, de jabuticaba, de sacolé de uva. Comia muita besteira roxa. Tinha açúcar e manchava, eu queria.

- Pega no pé, ué.
- Tá com marimbondo, seu Bill avisou.
- pffff... seu Bill não sabe de nada, não sai daquele bar.

Vai dizer que nunca pensou sair daqui? Ela no portão, já com peitos e pêlos, e essa janela aí, que parece que não tem ninguém dentro e quase não se vê o lado de fora. Eu acho que as pessoas lá fora tinham o direito de me ver aqui dentro vendo muito mal elas lá fora, querendo tudo ao contrário que eu quis quando eu só pensava em fruta. Comecei a pensar bastante nela. Foi na primeira viagem que fez pra São Paulo. Ia ficar na casa do primo, 15 anos, ela, ele, eu pequeno, invisível. passou um mês lá, as férias quase todas, eu sozinho, sozinho, quase não saía com os meninos. Ficava sozinho de noite no quintal bebendo vinho tinto que eu comprava com a mesada, era muito barato e muito tinto, manchava tudo, quando bebia e quando vomitava

uáááááá,

- Tá diferente, emagrecida.
- Você também tá diferente, agora tá tudo diferente. Eu não quero mais ir pra São Paulo não.
- Mas só vivia falando em São Paulo. Ia pra lá, queria fazer faculdade lá...
- Agora eu quero ir pro Rio, Fabiano, São Paulo não tem praia. A gente passou dois dias no Rio no carnaval e tem praia à beça, eu fiquei o tempo todo de biquíni. A praia é enorme, tem um monte de gente e a água é quentinha.
- E onde tem faculdade melhor?
- É tudo igual, garoto, mas a do Rio é a maior.
- Você vai fazer concurso?
- Só quero isso. E você, vai fazer o que da vida?

Toda noite eu bebia meu vinho, ela vinha. Fabiano, vai acabar que nem seu Bill! Fabiano, vai acabar com o fígado! Mas não achava mal de verdade, bebia um pouquinho também. A gente ficava rindo alto, às vezes dormia mesmo no quintal, na minha casa ninguém reparava e na casa dela ninguém sabia. Trazia revista, a gente lia com dicionário.

Lá todo mundo bebe o dia inteiro. Ela trazia livros que comprou em São Paulo, as férias acabando, os últimos diazinhos. Vimos e revimos as fotos do Rio, de biquíni o dia inteiro. São Paulo me parecia mais perto porque eu já tinha ouvido falar muito mais que do Rio. Rio quase não existia. Só passou a existir naqueles dias antes de voltar pro colégio. Só passou a existir naquelas fotos. Fiquei com uma, de biquíni. Ela me deu.

- Não vai fazer besteira com a minha foto.
- Besteira, que besteira? Vou botar na gaveta.
- Ah, pra botar na gaveta eu não dou.
- Boto no porta-retrato então.
- Aí tá.
- Mas vão dizer que você é minha namorada.
- Vão dizer quem? Só quem vai no seu quarto é a sua mãe e a sua tia.
E eu com a camisa manchada de vinho. Ela ficou mais perto, eu vi um risco de luz na mecha de cabelo dela perto e perto a gente foi ficando um tempo, até hoje, eu não sei quanto. Eu não queria entender, ela do lado de fora podia ver como eu estava do lado de dentro? Eu achava - thought - thththththth língua entre os dentes - que não precisava agarrar logo, eu queria, mas não sabia se era certo, eu com 11 anos tinha muito mais vontade, mas o jeito que eu fui criado - eu tinha a mãe, a tia e o seu bill, seu bill nunca disse nada que prestasse e eu achava que o que ele dizia era sujo. Ela saw-via o que eu via, uma mecha? Eu achei que vi uma luz verde saindo do sutian dela, mas eu estava bêbado. Uma vez ela falou sobre a cor dos chacras que ela viu numa revista e o chacra cardíaco era verde e era o chacra do amor. Eu nunca tinha sentido gosto de vinho na boca de outra pessoa, whine wine não era como o gosto de vinho na minha boca. Não sei por que fico pensando aqui, a janela me distrai, esse vidro fumê que me reflete um pouco. Queria vir pro Rio, passei a aceitar o Rio, a achar o Rio... melhor que lá em casa, melhor que qualquer coisa, ela ia me convencendo. No meu quintal ninguém ficava de biquíni... ficamos nus debaixo de árvore com ou sem marimbondo mas butt de biquíni ninguém, não tinha sol também que não fosse filtrado pelas folhas do pomar. Era tanta folha que não dava pra bronzear a gente direito, ia acabar malhado igual cow.
Como é que tá o céu hoje lá? Pequena, pequena sempre, a vida toda a cidade vai continuar diminuta, invisível? Eu não vou ver se ela encolhe mais ou se pára no tempo ou se dão mais que banco de cimento pra praça, eu só vou saber por carta e eles lá quase não ligam pra escrever, preferem telefonema, e no telefone ninguém diz muito bem o que acontece lá, só querem saber do que acontece aqui. Quando dá pra abrir a janela, eu vejo melhor o céu e os prédios, ainda perco os olhos no morro e tiro um pouco a cabeça de lá. Mas depois de um tempo até o morro me lembra. Tem gente que não devia mudar de lugar. Aqui o ar-condicionado fica ligado o dia todo, quase não posso abrir a janela. Pergunto sempre se alguém sabe dela mas lá eles só querem falar de mim, eu nunca encontrei ela na praia, a foto na gaveta aqui. Corrigir pilha de prova, mas desse jeito não vai. Aprende dois vinténs de uma coisa na vida e só sobra isso.

mais (entre parênteses)

Nenhum comentário: