19.7.03

Espelhos

Artur, o filho de minha quase-irmã e portanto meu quase-sobrinho, mira-se no espelho e o que vê é um estranho que lhe parece tão interessante quanto tudo mais que existe no universo ao seu redor, e assim começa o ciclo. A moça mira-se no espelho e o que vê é um nariz que não é o que está na capa da revista, uns olhos que não parecem misteriosos como o do cartaz do cinema e uma boca que num frêmito disse eu te amo sem ter a menor idéia do que isso significava. O homem mira-se no espelho do quarto na noite em que sua esposa chora, trancada no banheiro, e o que vê são as marcas no seu rosto daqueles lábios tenros e delicados da menina de olhos assustados que não sai de seu pensamento. A mulher mira-se no espelho para verificar se carrega no rosto a maquiagem adequada para o casamento de seu filho e o que vê é aquela que não via há décadas, aquela que havia abandonado seu pai para viver o amor da sua vida, aquela que morreu sozinha numa pequena cabana na beira-mar, os mesmos traços que não escondem o cansaço e a solidão. O homem alisa com as mãos cabelos que não mais estão aí enquanto vê, no espelho, um reflexo pálido atrás de si, e sorri pensando que, de alguma forma, ainda valia a pena. Finalmente, um pequeno espelho reflete, por puro acaso, um gesto de despedida perdido na multidão da rua agitada, enquanto lábios vermelhos são retocados, e é depois fechado e guardado numa bolsa, e não mais verá a luz desse mesmo dia.

reflexões no joseph kern's diary

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