15.7.03

Um convite ao olhar

Ser Olavo de Carvalho &/ou simpatizante no Rio de Janeiro é burrice. E cegueira. No mínimo miopia. Com uma pitada inequívoca de mau-caratismo. Ser Olavo de Carvalho no Rio de Janeiro é mostrar toda a incapacidade diante do generoso ato cotidiano do olhar. Olavo de Carvalho é como aquele adesivo preto que se cola aos vidros dos carros: o insul-film do intelecto. Ser Olavo de Carvalho no Rio de Janeiro é perder toda a chance de redenção, seja ela intelectual ou espiritual, numa cidade que as oferece aos borbotões, todos os dias, em todas as esquinas.

Fui e continuo sendo um crítico da estética da miséria, que tem desdobramentos em outros campos do pensamento brasileiro. Os subúrbios me fascinam, sempre fascinaram, e toda a moral própria que rege estes lugares me fascinaram, ainda que eu insista em vê-los criticamente. Também me fascina a miséria, as possibilidades da miséria, mas insistirei e não fazer da manutenção da miséria a minha bandeira. Não vejo com bons olhos grupos de que espécie forem, religiosos, sexuais, raciais e políticos. Enfim, quando olho para mim, dentro do ônibus, percebo que sou eu ainda sacolejando ao lado de um mulato de olhos vermelhos demais para o meu gosto.

Alguma coisa, porém, acontece quando, na Praia de Botafogo, em frente ao tráfego intenso das seis da tarde, sob um pôr-do-sol que já vai longe, vermelho como só o inverno pode proporcionar,um mendigo defeca. O gesto extremado de dignidade negativa talvez faça com que o gentleman, educado nos melhores colégios ingleses, vire o rosto e pense numa frase espirituosa. Ao redor deles, há meia-dúzia que aplaudirá. No banco da frente do mesmo ônibus, um estudante de filosofia provavelmente cite Kant para explicar a cor barrenta da dignidade esvaindo-se do homem. Lá atrás, tão deplorável quanto, um homem vestido de vermelho vivo, trajando boné, foice e martelo, rasga com os dentes travados uma nota de um real, maldizendo de si para si o capitalismo.

Pode parecer escatológica e de fato é a imagem de um mendigo defecando no meio de uma cidade de sete milhões de habitantes. Seria realmente um recurso retórico baixo, não fosse por um detalhe: é real. Não é matéria de ficção de subliterato comunista tardio, nem gracejo político de presidente sem dedo, muito menos fruto de uma mente exageradamente engajada de cineasta uspiano. Você escolhe: pode fechar os olhos, virar para o lado, concentrar-se num verso de Bruno Tolentino, rezar o terço, rir, chorar, tirar uma foto e mandar para o Ministro da Fazenda, sonhar com um mundo sem classes, tocar no bolso para se certificar que tem dinheiro para chegar em casa ou ainda ser indiferente. Meu convite é para que apenas olhe. Não use insul-film na alma.

(...)

Os vidros do carro estão fechados e o ar-condicionado no máximo. Conversa-se amenidade. A validade da crítica ao socialismo de George Orwell, em A Revolução dos Bichos. Talvez. O sinal fecha. O menino repete o gesto há algumas horas já: puxa o carrinho de lixeiro para o meio da faixa de pedestres, nele sobe, faz o sinal da cruz e joga três bolinhas de tênis usadas para cima. Por que faz o sinal da cruz, não sei. Parece cronometrado: poucos segundos antes de o sinal abrir, ele desce do carrinho de lixeiro que afasta rapidamente para o meio-fio e desfila entre os carros, pedindo moedas. Faz isso diariamente. E quase sempre dá de cara nos insul-films.

É uma situação absolutamente insolúvel. Não será, não!, a revolução comunista a salvação para o menino malabarista. Nem tampouco o liberalismo ortodoxo, muito menos lições de Charles Murray para índio ler. Tudo isso é bonito de se mostrar numa festa, bebendo-se espumante ou Chivas, comendo queijo suíço ou gorgonzola, entre muitos homens que têm o mesmo tique nervoso: limpam os óculos de tempos em tempos na manga da camisa. O que embaça a vista dos homens, contudo, não é o hálito das marés.

A mim me assusta constatar que Olavo de Carvalho e seu séquito de míopes, cegos e de caráteres duvidosos evoquem, em nome de sua causa, a voz de Cristo. Não entendem, eles, o significado da palavra piedade, que acompanha o discurso cristão pelos últimos séculos. O único sentido para a existência de um discurso asqueirosamente limitado como o de Olavo de Carvalho na imprensa brasileira e no meio de círculos intelectuais influentes é o da lição do engano. Por este sentido, Olavo de Carvalho funcionaria como uma espécie de catalisador de nossas maldades e mesquinharias diárias, justamente estas que nos impede de olhar. Simplesmente olhar.

com os óculos do Polzonoff

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