16.8.03

5) Bebida

Que o álcool numa solução diluída em água, quando tomado pelo organismo humano, atua como depressor e não como estimulante, é hoje um clichê tão batido que até os fisiólogos mais avançados estão começando a tomar conhecimento dele. O leigo inteligente não recorre à garrafa quando tem compromissos importantes a resolver, sejam intelectuais ou manuais; ele deixa a primeira dose para depois do trabalho feito, quando deseja relaxar a tensão e reduzir a pressão de seu mau humor. O álcool, por assim dizer, nos desenreda. Ele levanta o toldo da sensação e nos torna menos sensíveis aos estímulos externos e, particularmente, àqueles que nos são desagradáveis. Ao pôr um freio em todas as qualidades que nos permitem tocar a vida e brilhar diante dos colegas - por exemplo, a combatividade, a agudeza, a diligência, a ambição -, o álcool liberta as qualidades que nos enternecem e fazem com que as pessoas gostem de nós: a afabilidade, a tolerância, a generosidade, o humor, a simpatia. Um homem com dois ou três drinques a bordo não será capaz de amputar a perna de alguém, pilotar um avião ou reger a missa em si menor de Bach, mas será imensamente mais competente para dar uma festa, admirar uma mulher bonita ou ouvir a missa em si menor de Bach. As coisas mais difíceis e úteis do mundo, como extrair dentes ou descascar batatas, ficam melhores quando feitas por pessoas tão sóbrias quanto os condenados às vésperas da execução. Mas as coisas mais gostosas, inúteis e divertidas deveriam ficar a cargo daqueles já devidamente lubrificados. O Pithecanthropus erectus era abstêmio, mas os anjos sempre souberam o que lhes convinha às cinco da tarde.

Tudo isto é tão óbvio que me espanto ao ver que nenhum utópico, até hoje, se propôs a abolir todas as lamentações do mundo pelo simples artifício de manter toda a humanidade ligeiramente alta. Note bem, eu não disse bêbada; disse ligeiramente alta - e peço desculpas por não saber como descrever este estado numa frase menos indecorosa. O homem ligeiramente calibrado pelo álcool é capaz de pôr suas melhores qualidades para fora. Ele não é apenas imensamente mais amável do que o indivíduo que vive a seco; é também imensamente mais decente. Reage a todas as situações de maneira expansiva, generosa e humana. Torna-se mais liberal tolerante e agradável. É melhor cidadão, marido, pai e amigo. As iniciativas que tornam a vida humana insegura e desconfortável nunca são tomadas por este homem: ele não declara guerras, não rouba nem oprime ninguém. Todas as grandes vilanias da História foram perpetradas por homens sóbrios e, principalmente, por abstêmios. Mas todas as coisas belas, do Cântico dos Cânticos à tartaruga à Maryland, das nove sinfonias de Beethoven ao martíni seco, foram concebidas por homens que, na hora certa, trocavam a água da bica por algo mais colorido e com outros ingredientes que não apenas hidrogênio e oxigênio.

no alambique dentro do confessionário do Padre Levedo

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