O videotexto (Post XX)
Chegamos à festa. Festa de músicos eruditos. Poucas mulheres e discussões sobre Mozart e Wagner. Ainda bem que eu fui. Dez minutos depois daquele papo sem graça, a conversa mudou para bizarrices sexuais e a tara nossa de cada dia. Não há nada mais divertido do que falar de sexo. Pena que o repertório seja limitado.
Na roda estávamos eu, quatro rapazes, o "ex" e uma violinista muito simpática, que tropeçou na minha frente logo que eu cheguei. Ela só não se esborrachou no chão porque se apoiou em mim - um acidente que fez com que passássemos alguns minutos no hall de entrada. Foram minutos suficientes pra eu ir com a cara da menina e apresentá-la para o "ex" e seus amigos. Fui gentil. Ela estava sozinha, não parecia ser uma mala sem alça e era uma moça muito bonita. Os rapazes da mesa, certamente, me agradeceriam pela sociabilidade. Quanto ao "ex", não havia o que me preocupar. Ele era maravilhoso, mas era feio feito o cão chupando manga. Ela não se interessaria por ele, não aquela loira linda que poderia ter qualquer banana daquela festa.
Duas horas depois de muito vinho e conversa boa, apareceu no meio do jardim um bolo e um aniversariante. Todos se levantaram para os parabéns e, na hora do corte do bolo, perceberam que não havia como cortá-lo. Por mania de educação desnecessária, me ofereci para ir até cozinha buscar uma faca.
Revirei um armário inteiro atrás de uma bendita espátula e não encontrei. Tive que lavar uma faca de pão que estava melecada de manteiga dentro da pia. Lavei, sequei e corri para entregá-la ao aniversariante. Atravessei a cozinha, segui pelo corredor, passei pela sala, abri a porta que dava para a sala de estar e senti que a porta havia emperrado em alguém. Antes que eu pudesse me desculpar, me deparei com o "ex" e a loira se engolindo atrás da porta.
Nunca imaginei que isso fosse possível, mas eu surtei. Joguei a carteira e a chave dele num matagal de terreno baldio, arranquei a minha chave do bolso dele, disse um monte de absurdos com a faca a um milímetro do nariz dos dois e enfiei a mão na cara da loira no mesmo instante que ela abriu a boca para dizer alguma coisa que eu não me dei ao trabalho de ouvir.
Eu sei que estávamos separados, sei que eu disse que queria ser amiga, mas ficar com alguém na minha frente? Assim? Tão rápido? E logo com a bonitona? Meio bêbada e aos prantos, saí da festa com o cretino tentando me segurar pela bolsa. Não satisfeito, tentou segurar a porta do carro. Quase perdeu as unhas dos dedos para sempre. Parti cantando pneus. E chorei tanto e corri tanto, que acordei em um pronto-socorro.
O videotexto (Post XXI)
Abri os olhos e achei que estava sonhando ou que tinha morrido. O clone do "ex", estava ao meu lado meio choroso e com um buquê de flores nas mãos. Não tive dúvidas: "Morri e estou vendo meu próprio enterro". Meus pais entraram no quarto no momento seguinte e me acordaram do pesadelo. Fui obrigada a me defender das broncas, antes mesmo de comemorar a escapada que eu dei na morte. Passado o esporro, me dei conta do que aconteceu. De tanto chorar, dormi no volante. Quis morrer de ódio, no instante seguinte.
Que coisa estúpida, dormir ao volante. Eu não durmo nunca! Logo no volante? Mas não lembrava de ter batido o carro e me estropiado toda. Eu não, porque até dormindo eu dirijo bem. As poucas lembranças e os fatos indicavam que eu fui adormecendo, indo para o acostamento, o carro parando e parou. Eu teria acordado, levado um susto, mas estava protegida pela arte da "pilota" sonâmbula. E nenhum acidente teria acontecido se não fosse por causa de uma outra topeira sonolenta que cochilou e fez um strike de meia dúzia de carros na estrada. Eu não vi nada - me contaram - e ainda bem que não vi. Seria como acordar em um grande desastre físico e emocional. Porque, maior do que a dorzinha dos poucos hematomas da batida, eram as dores da cena do dia anterior.
O beijo que o crápula deu na loira foi o ponto final nas recaídas, na saudade e na história toda. Não havia mais o que extrair daquele relacionamento, mas como doía! Uma dor egoísta que me fazia crer que eu podia e ele não. O clone ao meu lado, sem saber de nada, achando que eu era namorada dele e eu acusando mentalmente o "ex" por não respeitar o prazo de validade da nossa separação.
Pra piorar, aquele escândalo. Que merda, que vergonha! Deixei o cara sem carteira, sem dinheiro, sem condução e com uma violinista linda, que certamente o levou para dormir na casa dela. Que estúpida, que desequilibrada e que vontade de continuar chorando. Mas não podia.
No meio de toda a minha dor de cotovelo, ainda fui obrigada a mentir. Não podia dizer o motivo daquela presepada toda. Nem para o clone e muito menos para os meus pais. Graças a deus meu orgulho sempre foi maior do que as minhas crises de insanidade. Eu não assumiria um chilique como aquele, nunca! Além do mais, tadinho do clone. Todo atencioso, preocupado, não desgrudou de mim um minuto sequer. Dormiu no sofá do hospital, passou frio de noite, me deu água na boca e quando eu acordei, ele não estava mais lá. Estranhei mas, pouco depois, ele chegou com o café da manhã, um presente e um cartão.
Mordi a maçã, abri a pequena caixinha com um anel lindo, agradeci achando que era um agrado qualquer e tirei o cartão do envelope:
"Não tente parecer forte para sempre. Eu sei o quanto você é frágil.
Casa comigo? Eu cuido de você."
----------------------->> Continua
na cumbuca de amarula com sucrilhos
16.8.03
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