anestesia
Existe uma espécie de lagarta (taturana, para os íntimos), da espécie Lonomia obliqua, cujo veneno altera o fator de coagulação do sangue. É pavoroso. Se deixar o veneno correr, sem antídoto rápido, a pessoa morre de um jeito horroroso. Visualize todas as feridinhas que você já teve na vida. Todas elas, incluindo o arranhão do gato, a mordida do cachorro, o dente que você extraiu, o joelho ralado da queda da bicicleta. Imaginou? Então. O veneno da bichinha parece que altera a memória do corpo e tooodas as feridas se abrem, ao mesmo tempo. O infeliz morre de hemorragia e insuficiência renal, além do puta refresh na memória.
Já repararam como eu gosto de introduções científicas?
Essa pequena aula de biologia junto com o resumo fático é pra contar que encostei num ninho emocional dessas taturanas.
Durante muuuito tempo, desenvolvi um fascinante mecanismo de defesa contra a dor emocional. Não vou contar o que causou a dor emocional, isso é assunto pro Márcio. Só vou contar que o mecanismo é fascinante. Tudo aquilo que causa alguma dor emocional e que eu possa explicar numa relação de causa e efeito (a mais bê, um mais dois igual a três, etc) não vai me atingir. A dor nem chega perto. Só fica comigo aquela dor que não explico, aquela que não entendo por que foi causada. Essa, carrego (carregava?) socada no fundo de algum canto do meu corpo, acreditando que, se ficasse bem quieta e não mexesse nela, ela iria embora. Nessa época, eu também acreditava em Papai Noel, no coelhinho da Páscoa e em príncipe encantado. Com o tempo, deixer de acreditar neles, mas continuei botando fé no meu método.
Até que comecei a perceber que além de anestesiar a dor, eu anestesiava todas as outras sensações. E que não sentir a dor me impedia de perceber onde estava me metendo - afinal, a gente só sabe que está pisando em pregos quando sente o furo no pé. E lá seguia eu, pisando em pregos e vidros e achando tudo lindo. E estranhamente passiva, esperando que a vida - assim como a dor - se resolvesse por si mesma, com um sorriso meio besta e sem território nenhum.
Com o Márcio, percebi que estava envolvida num imenso e poderoso sudário emocional. Sudário emocional é forte, eu sei, mas é isso mesmo - hoje estou mexicanizando as coisas, leve a mal não.
E então, decidida a sentir a dor e a delícia da dor, toquei no ninho das taturanas. Meti a mão com gosto, apertando todas as lagartas e olhando minha mão vermelha. O veneno tá correndo pelo meu corpo, rápido. Tá tudo aberto.
Estou aqui no meu canto, lambendo as feridas, uma por uma, chorando enquanto escrevo, orgulhosa da minha saliva abundante e curativa, querendo gritar daqui do décimo andar do prédio, sair correndo, sentir o vento frio no rosto, ser contida pelos seguranças, morder todos eles e continuar correndo e chorando e rindo feito louca, só porque estou me sentindo perigosamente viva.
Mas é essa vida sem anestesia que eu quero. Bem vinda, dor. Esse corpinho te quer e te pertence.
a dor perolada
26.8.03
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