Era uma vez, há muitos e muitos anos, não era eu
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Caralho, como faz frio nesta terra.
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Fragmentos do meu antigo quarto de adolescente, porque nunca morei nesta casa e este nunca foi meu. Alguns brinquedos, umas bonecas e uns bichos de pelúcia. Umas caixas que estavam na minha ex-casa, que não era dos meus pais, mas também não era exatamente minha. Nem um pouco minha, para ser sincera. Era assim que eu sentia. Estava tudo pronto quando mudei para lá, os móveis, os espaços. Eu só me acomodei. E como me acomodei. Em todos os sentidos possíveis e imagináveis, eu me acomodei. A vida era calminha, a casa era limpinha, a cama era quentinha. Vivia tentando estragar tudo, até que finalmente consegui, ao mesmo tempo em que resolvi me mandar para São Paulo. Tomei a decisão quase sem pensar, porque era a única saída, a única coisa que eu poderia fazer naquele momento. São Paulo era o único caminho. Não sabia direito por que tinha decidido ir para lá, mas agora as coisas parecem bem mais claras. Eu precisava sair desta cidade, precisava sair de perto de tudo. Não tanto por causa da cidade quanto por minha causa. Eu precisava sair daqui, quebrar a cara, ser despejada, rejeitada, tomar no rabo, viver na sujeira, fazer sexo com pessoas que eu esquecia o nome no dia seguinte, beber, ficar doente, ficar sozinha, sozinha, sozinha, morrer de solidão, ficar pobre e não ter com quem contar. Pobre, eu precisava ficar pobre e sozinha. Eu precisava de tudo que me aconteceu, porque agora eu vejo a vida que levava aqui e meu deus, não tem nada a ver comigo, eu estava perdida, não sabia quem eu era, estava perdida no conforto e no comodismo. Tudo era tão fácil, e eu sofria por ser tudo tão fácil, não era o que eu queria.
Tudo faz sentido quando vejo esse guarda-roupas aberto na minha frente, com um bilhão de roupas que não quero nem saber e que devem ter custado uma fortuna, muitos aluguéis, muitas refeições, muitos maços de cigarro e contas de luz, porque eu não me preocupava com essas coisas e não fazia idéia do valor do dinheiro. Vejo minhas fotos, o cabelo cortado em cabelereiro, as unhas tão bem-feitinhas, meu deus, o que eu pensava da vida? Como eu vivia assim, com tantas coisas que não eram importantes? Não era eu, já disse. Eu não sabia quem era. Precisei me mandar para me encontrar. Precisei chegar em um limite, magoar uma pessoa que não merecia, fazer uma tonelada de merda para descobrir que precisava me descobrir.
Cara, ainda bem que eu me mandei.
Já que fucei nas minhas roupas e nas minhas fotos antigas, resolvi mexer em uns textos velhos e mofados de 3, 4 anos atrás, da época do CardosOnline, o e-zine onde tudo começou. Leia-se eu, a Livros do Mal, a descoberta que escrever era o que eu tinha que fazer. Tudo. Minha amizade com os mocinhos que faziam o COL, a redescoberta da minha vida, que tinha sido drenada de mim por um cuzão qualquer que era medíocre demais para entender. E tudo faz sentido. Eu estava ficando bem louca porque estava perdida, perdida.
Hoje eu entendi tudo.
Ainda bem que eu me mandei. Todo mundo devia se mandar, mudar de cidade, sair de casa, cortar o umbigo e declinar qualquer tipo de ajuda. Não há nada como a sensação de tocar a própria vida, de saber para onde ir, descobrir que o essencial na verdade era um monte de tranqueiras atravancando o seu caminho. O meu caminho. Um monte de coisas que me prendiam e que agora não fazem mais parte da minha vida. Agora eu sei, eu sinto que estou no caminho certo. Esse texto que encontrei foi a confirmação do que eu já sabia: minha vida tinha quer ser exatamente como é.
Senhoras e senhores, com vocês, o meu passado.
I can't see until I see your eyes
Eu queria ser maldita. Mas eu sou uma filha da puta sortuda.
Queria ter que escrever três páginas por dia para a dona da pensão não me expulsar, que nem o Leonard Cohen. Queria ter que comer migalhas e contar que uma puta me deixou ficar na casa dela uma vez. My name is Jane and I'm an addict. Queria ter que escrever em folhas de papel de pão de meio quilo. Queria ser junkie, junkie de verdade, queria ter os braços cheios de abcessos. Mas não. Eu trabalho e tenho a pele lisinha e dinheiro e pessoas a quem recorrer e tento ser sã e equilibrada.
Quero ser homeless. Quero morrer junkie aos 23 anos. Quero ser podre. Quero apodrecer viva. Podridão é inerente. Inevitável. Todo mundo tenta esconder a podridão com banhos e sabonetes e perfumes e clareamento de dentes. Dentes. Dentes podres, todo mundo sorri com dentes branquinhos mas são podres por dentro. Quanto mais brancos, mais podres. Quanto mais artificiais, mas ocas. Pessoas sem dentes são legais.
Quero ser puta e vender minhas carnes. Corpos são montes de carne, sacos de pele e ossos cheios de bichinhos que a gente nem vê e que passam o dia caminhando e nos comendo. Corpos só pesam. Almas são livres e hippies. Leves e de vestidos esvoaçantes. Não quero mais meu corpo. Não quero mais ter carnes. Não quero mais ter corpo.
Queria que não gostassem de mim. Queria que me jogassem tomates e repolhos e que eu fosse enforcada em praça pública. Queria ser maldita e suja e poder ser insana em paz. Poder deixar meus cabelos desgrenharem e ficarem iguais aos da Josefina, minha primeira boneca que tinha um black power.
Queria ter virado uma esquina diferente e não saber o que é isso que você me deu, essa pedrinha que brilha muito. Voltar no tempo, queria voltar no tempo. Pra que começar se não vai terminar? Queria voltar no tempo.
Jesus não salva. Jesus não vai voltar. Jesus tem um programa na tv. Jesus era negro. Jesus escreveu um cheque em branco. Jesus está invisível no icq. Jesus é um gênio surdo, mudo e analfabeto.
Não tem sol. É frio. É duro, é amargo. Olha e não quer ver. Não quer ver mesmo. Nem ouvir, nem explicar, nem nada. Não quer. Não pode. Não vai.
Queria não saber. Queria não conhecer. Burra, queria ser burra. Queria ser burra e sã. Sã. Queria ser sã. Queria ser sã e burra e não chorar. Chorar é coisa de mariquinhas. Eu sou mariquinhas. Chorona.
Queria acordar e te contar meu sonho e ouvir o teu. Queria chorar muito no teu ombro. Queria poder te contar tudo que caminha dentro da minha cabeça.
Não quer ouvir, não quer ver, não quer explicar. Não vai, não pode, não quer.
Eu não vou continuar tentando. Não vou. Desisti.
Queria ser ontem. Semana passada. Mês passado. Hoje não. Hoje nunca. Mas ontem passou. E amanhã ainda não chegou.
Um dia chega. Agora chega.
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She is back! - brazileira!preta
8.8.03
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