5.8.03

Eu sei, eu vejo.

Vejo que perco a paciência, vejo que passo meia hora calado sem comentar nenhuma das coisas que você me conta, vejo que depois de no máximo duas horas fico inquieto e morrendo de vontade de ir embora. Vejo que você também vê mas prefere fazer que não e então continua falando, continua insistindo, continua me pedindo pra ficar mais um pouco. Vejo que você procura e inventa assuntos e nomes e datas pra tentar me entreter. Eu sei, eu vejo.

Se não me dói? Dói. Dói e me faz sentir culpa, muita culpa. E, pior, ainda me faz sentir pena, pena de você, dó, lástima. Pena de te ver falando sem parar e sem que eu te conceda uma mísera interjeição daquelas que todo mundo solta só pra que quem fala não se sinta só. Pena de te ouvir inventando assuntos desconexos sem conseguir prender minha atenção nem evitar que eu não te olhe muito enquanto você fala. Pena de te ver fechando a porta nas minhas costas e restando sozinha naquela casa grande e vazia. Pena, é horrível, eu sei, mas me faz mesmo sentir muita pena.

E só me faz sentir pena porque já fechei a mesma porta quando eram as suas costas que se distanciavam daquela casa grande e vazia e porque até hoje, sinceramente, até hoje eu não aceito o argumento não dito mas defendido por deus e todo mundo de que aquilo não foi exatamente assim, não foi simplesmente um dar as costas, não foi isso, ela foi viver a vida dela, foi tentar ser feliz de outro jeito. Eu não aceito isso. Eu não acredito nisso. Eu não concordo com isso. Eu só finjo que concordo.

É, eu finjo. Eu forjo. Eu minto. É horrível isso também, dói isso também, me faz sentir pena de você isso também. Mas me faz sentir mais pena de mim. Pena e culpa, muita culpa, mais culpa.

Mas passa, eu sei, eu vejo. Ontem percebi que já sei que passa, que vejo que passa. De vez em quando, ainda que correndo no ritmo da minha impaciência e sem nenhuma interjeição que dê um instante para um suspiro e terminando mesmo com você fechando a porta e eu te dando as costas, ainda que assim, ainda que só de vez em quando, tudo isso passa e por vezes me sinto em paz. É a minha redenção e ontem eu soube, ontem eu vi: de vez em quando vivo a minha redenção.

O bolo de fubá feito ali, na minha frente, sem receita, sem dificuldade, sem muito tempo, sem palavras, sem me pedir pra dizer nada, sem intervalos, sem mais ninguém, só o bolo, só pra mim; não pra que eu comesse ali, não pra que eu ficasse mais um pouquinho, só pra que levasse comigo na hora em que te desse as costas e você restasse sozinha naquela casa. Só ele, só pra mim, em silêncio: aquilo foi a minha redenção e eu soube, eu vi. Eu vi e quis que o tempo que ele levou pra assar na nossa frente se estendesse e se alongasse até que eu me esquecesse de tudo, até que não doesse, até que eu realmente te ouvisse, até que não nos culpasse.

Eu vi e quis que o tempo se derretesse até que eu não soubesse nem visse nada disso mas percebi que agora é impossível porque infelizmente eu já sei. Eu sei, eu vejo, e isso não passa.


coisas da estrangeiridade (sem plincs)

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