9.8.03

"Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas"


Só uma vez na vida estive nos EUA, visitando meu noivo, que mora em LA (Não, não o conheci na internet. Já namorávamos há dois anos quando ele foi para lá, a trabalho, há dois anos e meio. Ano que vem voltaremos a habitar a mesma cidade, e melhor, a mesma casa, e estaremos casados. Fecha parêntese). Eu dizia que quase nada conheço dos EUA. Passado um tempo da ida de meu noivo para lá, eu vim para Bruxelas, também por motivos profissionais. E aqui estou. Mas, se não conheço os EUA, minha amiga Luciana, que lá morou durante anos, conhece bem. Mês passado ela esteve rapidamente aqui na Bélgica, pela primeira vez. Conversamos.

«A Bélgica lembra o Brasil, né ?», ela comentou.

«Ah, bom? Em quê, exatamente ?»


«Estive observando as pessoas que conheci aqui e tive essa sensação. Nos EUA, a única fonte de sucesso e realização é a profissão. Se você não progride no trabalho, você é um looser. E para se progredir, não se hesita muito em se sacrificar a família ou, até, nem tê-la. Aqui, a família pode cumprir esse papel do preenchimento do ego, de forma que não será tão traumatizante se você for apenas razoável profissionalmente».

Fiquei pensando naquilo. Pensando em mim, correndo feito louca atrás de uma boa formação profissional, e em meu noivo,correndo para o outro lado, atrás da formação dele. Mesmo que tenha havido a promessa de voltarmos a nos instalar no mesmo local, e que essa promessa vá se cumprir ano que vem. Ainda assim. Arriscamos. Promessas não são karma. E esses foram anos em que poderíamos ter estado juntos, e não estivemos. E mesmo quando estivermos, seremos eu e ele, longe de nossas famílias, e por quê ? Mais uma vez, a tal corrida profissional e o medo de ser um looser. Dessa vez correremos juntos eu e ele, mas os outros estarão ainda longe. Eu lembrava de Luciana, de suas palavras, perguntava se eu estava fazendo a coisa certa, e se essa distância valia a pena. E vejam que nunca fui o tipo apegado à família, desde os 18 anos moro só, o que não é o mais usual na tal classe média brasileira. Mais uma vez, ainda assim.

Para piorar, nesse dia conversei muito com Marjorie, uma amiga belga. Marjorie tem um grande potencial. Faz um trabalho admirável em fonologia da língua dos sinais. Ela é só dois anos mais velha que eu, e tem um filho de alguns meses, Lounis. Eu a olho e tenho quase inveja em perceber que ela não sacrificou nada da vida pessoal ao trabalho, e é claro para ela que se algo tiver que ser sacrificado, será o segundo. Invejo essa certeza dela, essa felicidade da certeza da boa escolha.

Na ocasião, ela tinha tido um problema na renovação da sua bolsa (agora já resolvido) e estava já procurando emprego nos classificados. Vocês estão entendendo? Ela estava na iminência de ter que suspender sua pesquisa por um ano ou mais, pois na condição de mãe precisava de um salário certo, não podia se dar ao luxo de passar um aperto grande demais. Iria trabalhar como secretária, garçonete, ou sei lá o quê ela tinha em mente. Mas não estava revoltada, aflita, irritada. Contava isso sorrindo como quem acha quase divertido um imprevisto desses na vida, como quem não se importasse e como quem dissesse mudamente: «Quem se importa de passar um ano atendendo telefonemas ou servindo cerveja, de esperar um pouco para continuar a pesquisa que tanto me interessa, se estou fazendo em benefício de minha família ?». Claro, eu faria igual. A diferença é que não sei se faria sorrindo.

Naquela noite não dormi quase nada, pensando no filho que eu queria ter, mas não tinha, porque meu noivo morava em outra cidade. Que não terei mesmo quando ele se mudar para cá, porque tenho uma tese para escrever e tenho medo de ser doutoranda e mãe ao mesmo tempo, medo de não conseguir. E pensando no meu noivo, sobre o quanto sei que o amo e, mesmo assim, ao invés de ir me juntar a ele, de seguí-lo, vim para cá, por conta da boa oportunidade profissional. A tal oportunidade era mais válida que o amor? Foi o que eu pensei, quando me decidi? (Na verdade sei o que eu pensei: que se me sacrificasse por ele e o relacionamento acabasse, não perdoaria nem a ele nem a mim. E achava que poderíamos esperar. Tendemos a pensar que o amor é paciente. No meu caso, foi, mas por sorte. Não sei se paciência é inerente ao amor. Eu me arrisquei. Falando como Einstein, joguei dados com minha vida afetiva).

Sim, esse é só mais um «draminha da mulher moderna». Tadinha de mim, não? Talvez encontre a resposta na reportagem de capa do próximo número de Marie Claire.

nos alfarrábios do scriptorium

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