Ônibus 474
Ontem, voltando para casa depois de alguns uísques (dois) na Livraria da Travessa, com meu amigo Bruno, peguei o 474, o famoso Jacaré, para voltar para casa. Ainda na Visconde de Pirajá, entraram no ônibus quatro cinco crianças. A maior delas devia ter uns dezesseis anos. Negra, gorda, com um lenço na cabeça, ela carregava uma criança. Entrou pela porta da frente, como todo mundo, mas foi advertida pelo motorista de que deveria pagar passagem.
— Estou grávida — foi a desculpa.
O motorista, então, mandou que ela e as crianças menores entrassem pela porta dos fundos. No começo eu achava que este tipo de coisa era camaradagem, mas depois me disseram que, no Rio de Janeiro, se o motorista não deixa estas pessoas entrarem no ônibus sem pagar, no dia seguinte acorda com a boca cheia de formiga. Não sei o quanto disso é mito e, sinceramente, não quero nem saber.
Entraram, então, pela porta dos fundos. Além da negra gorda, que usava um lenço amarelo na cabeça e que se passava tranqüilamente por uma mulher adulta da minha idade, havia ainda a filhinha dela, de nome Samira, dois menininhos de no máximo dez anos e uma menina púbere.
Como o ônibus estivesse vazio, sentaram-se nas janelas. A mulher gorda com a filha sentou-se no banco à minha frente; os dois meninos do banco atrás de mim e a menininha púbere na outra fileira, no corredor. Uma vez instalados, colocaram a cabeça para fora. Foi um dos menininhos que anunciou:
— Vou zoar.
A partir daí começaram todos, exceto pela menina púbere, a xingar os que passavam pela rua. Inclusive a menina que era mãe.
— Aí gostosa filhadaputa — gritava um dos meninos.
— Olha o bonde putada — gritava o outro.
— Ô Maria macumbeira, pé de bode — gritava a mulher mais velha.
— Bando de viado. É tudo puta — gritavam os meninos.
A certa hora, o motorista se manifestou e mandou que calassem a boca. Ninguém deu bola para aquela autoridade improvisada. E continuaram gritando seus impropérios.
Não sei se era efeito do álcool (acho que não, já que a impressão se mantém hoje, passadas algumas horas do ocorrido), mas não conseguia pensar em outra coisa senão na danação destas pessoas. A menina-mãe ria, chorava de tanto rir, enquanto xingava as pessoas e mandava Samira calar a boca. A menininha, de não mais que um ano, tinha duas marias-chiquinhas no cabelo pixaim, e aceitava os calabocas com um silêncio maduro, cheio de temor.
E eu passando pela Nossa Senhora de Copacabana com travecos, pela Princesa Isabel cheia de malabaristas de semáforos àquela hora, tentando arranjar uma, só uma, solução para estas pessoas. O trajeto até o ponto onde eu desceria não era tão longo, no entanto.
Havia um rancor, um ressentimento, um ódio na voz daqueles menininhos que silenciavam qualquer desejo utópico que pudesse habitar meu espírito embriagado àquela hora. Marx não é capaz de sobreviver a uma violência precoce, ainda que tão-somente verbal, destas.
Mas foi só quando cheguei em casa e coloquei os travesseiros de pena de ganso dentro da fronha que tive a exata medida da distância entre mim e aqueles que andaram comigo no 474 – Jacaré.
Eles jamais dormirão numa fronha branca, em travesseiros de pena de ganso, sob um edredon quente inútil na noite mais quente ainda. E, por isso, continuarão gritando para as pessoas na rua, com visível maldade e sem inocência alguma, numa vingança emergencial:
— Aí gostosa filhadaputa!
— Olha o bonde putada!
— Ô Maria macumbeira, pé de bode!
— Bando de viado. É tudo puta!
Viação Polzonoff
25.8.03
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