29.8.03

O Mal

Não digo que a culpa tenha sido daqueles tênis laranjas fosforescentes. Certamente eles foram importantes. Deram o ponta-pé inicial. O tiro que anuncia a largada na corrida. Mas não criaram os corredores, não inventaram a corrida. Os corredores estavam lá. Deus sabe há quanto tempo eles estavam lá, curvados, à espera dos tênis laranjas fosforescentes. Ou de qualquer outra coisa que apitasse, que explodisse, que gritasse: vai!

*

Eu havia ganho aqueles tênis.

É claro que eu havia ganho.

Deus, como eram horríveis. Horríveis, mas confortáveis – the american way.

Eu acabara se sonhar que corria pelado atrás de mulheres maravilhosas. Não totalmente pelado. Calçava tênis de corrida. Laranjas. Fosforescentes. As mulheres apontavam para a minha barriga e gargalhavam. Eu nunca conseguia alcançá-las.

Levantei da cama transtornado, fui pegar o jornal na porta e lá estava a caixa da Nike, com um bilhete da minha ex-mulher: Não é pra correr de mim, hein? Beijos, Andréia.

Apalpei minha barriga. Aquele não era um presente apenas de minha ex-mulher. Era evidente. Deus me dizia: faça cooper! Abandone essa vida sedentária, seu idiota. Cooper! Essa é a palavra: cooper!

Mas com esses tênis? Laranjas?

Sim, com esses tênis. Horríveis, mas confortáveis. Mas confortáveis, mas confortáveis, mas confortáveis...

*

Eu me sentia um homem verdadeiramente iluminado quando saí de casa calçado naqueles espetaculares faróis de milha. Cooper seria só o começo. Em breve, São Silvestre. Fichinha. Depois Nova York, Paris, Berlim. Os cadernos de esporte dariam a manchete: Desempregado Ocioso Corre Atrás da Vida – e a Ultrapassa. Olá, Pan-americano! Como vai, srta. Olimpíadas? Sabe, Jô, eu acho que correr é simples, basta colocar várias vezes um pé na frente do outro, só que rápido. Obrigado, obrigado. Desfile em caminhões de bombeiros. Autógrafos a ninfetinhas. Caviar a trinta e cinco mil pés de altitude. O Corredor Laranja Vence Mais Uma. Obrigado, obrigado.

Depois de correr três ou quatro minutos pelo Ibirapuera, fiquei ofegante e me perguntei: que diabos estou fazendo? Correndo de quem? Atrás do quê? Isso é simplesmente ridículo. Um homem dessa idade saltitando pela grama. Acendi um cigarro e lembrei do Renato. Renato morava ali perto e nunca recusava uma cerveja. Decidi lhe dar um alô. Para aliviar um pouco o sentimento de culpa pelo abandono precoce da minha carreira de corredor e pela manutenção de minha barriga (minha barriga é meu reino e eu pretendo expandi-la, disse Falstaff, meu ídolo), caminhei balançando os braços como um velho esportista, um connaisseur da circulação sanguínea.

Toquei a campainha. Renato abriu a porta. Seus olhos imediatamente miraram meus tênis.

Bang!

Era dada a largada.

*

- Não olhe agora, mas há algo laranja brilhante nos seus pés.

Antes mesmo de terminar o gracejo, um fio de sangue começou a escorrer do seu nariz.

(...)

a maratona continua em F D R

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