19.8.03

Santiago, 13 de Maio

Querida Márcia. Deve estar esperando notícias minhas há muito tempo. Fazem quase oito meses que sai pra comprar mais vinho e nunca mais voltei, liguei, noticiei, nada! Isso foi um tanto deselegante de minha parte, confesso! Mas não foi intencional, acredite! O que aconteceu é que, você lembra, estávamos na sua casa, íamos comemorar o fato de termos marcado o dia de nosso tão sonhado casamento com aquele fetuccini que só você sabe fazer. Tínhamos finalmente conseguido juntar dinheiro suficiente para um apartamento, para a festa, a lua-de-mel nos Andes, e para viver uns dois anos sem aperto. Pena o vinho ter acabado antes de começarmos a comer. Então, você lembra, era uma fria e chuvosa noite de setembro. Não poderíamos ficar sem vinho. Coloquei o casaco e fui até o Boticcielli's e estava fechando. Ainda consegui convencer o funcionário que estava fechando a porta me vender uma garrafa de Periquitta pela pantográfica. Foi quando senti algo me encostar à nuca, e uma voz feminina, mas muito imperativa, dizendo que não olhasse para traz e nem reagisse que tudo acabaria bem. O atendente viu a marginal e tentou chamar a polícia, mas acabou morto. Quase fiquei surdo com os disparos sobre o meu ombro. Até hoje não escuto bem com o ouvido direito. Ela me forçou entrar num carro preto e dirigir pra ela. Sempre apontando para minha cabeça. Disse que dirigisse sem fazer perguntas. Passamos semanas na estrada, dormindo em motéis baratos, assaltando postos de combustível para conseguir gasolina e comida. Com o passar dos dias, e a solidão da estrada, fomos nos conhecendo melhor. Ela passou a não mais apontar a arma para mim com tanta freqüência e a fazer perguntas pessoais. Disse que era dentista, tinha noiva, que saíra pra comprar vinho e tudo mais. Ela era bonita, jovem, parecia com aquelas marginais de filmes americanos. Ruiva. Olhos verdes. Atlética. Dentre tantas conversas, ela acabou confessando que na noite que me seqüestrou ela queria assaltar o Boticcielli's para conseguir dinheiro para ir até o Chile sem precisar ficar apontando armas para frentistas. Disse que escolheu a adega porque era menos manjado e tinha uma boa circulação de dinheiro. Estava indo para o Chile para participar de um tipo de golpe, armado por uns outros marginais, que lhe renderia uma boa quantia e poderia passar uns tempos em uma cabana qualquer nos Andes, vivendo de vinhos e comidas quentes. Bem, como nós queríamos a nossa lua-de-mel, lembra querida? Pois é, assim que chegássemos a Santiago ela me libertaria. Quando chegamos, eu revelei a ela que estava apaixonado e não poderia mais viver sem ela. Ela disse que também sentia algo por mim. Então convenci ela de não participar do golpe. Saquei minhas economias, e como deve ter percebido, peguei todo o dinheiro da conta conjunta que eu e você, minha querida, tínhamos. Dinheiro que economizamos durante todos estes anos juntos, mas era para uma boa causa. Compramos um apartamento num bairro tranqüilo em Santiago, onde montei meu consultório. Ela está a quatro meses trabalhando de Relações Públicas de uma fábrica de pescados. Vamos nos casar em Julho, e passar a lua-de-mel em algum lugar nos Andes, com muito vinho e comidas quentes. Desculpe minha querida, mas não pude evitar. Foi um golpe do destino. Eu sinto muito. Sei que deveria lhe dar notícias, mas espero que você esteja bem e que não venha me procurar. Pois mudei de nome, operei o nariz (como sempre quis), estou usando um endereço fictício, e agora sou um homem comprometido. Mas saiba que nunca deixei de gostar de você, e talvez nunca deixe.

Beijos, de seu eterno xonadinho

Flávio.

em proclames da alma

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