7.9.03

Caminhou Paulo por dias por trilhas verde-escuras por nada. No diário mental rascunhado ao longo do espaço percorrido por cada pé ante pé ante pé (a secreta corrida disputada sem que percebamos), Paulo anotou a lápis a mudança dos tons da areia a descansar nos acostamentos, ora inexistentes ora não. Por não carregar consigo mantimentos ou utensílios cortantes para sangrar as árvores e beber sua seiva, refugiou sua fome no campo das possibilidades. É possível, claro.

Mas, via os grãos de areia e pensava sobre o gosto da namorada e no dia em que engoliu um pêlo dela por descuido. No meio do caminho (longo, como manda a Tradição), Paulo agachou-se e pôs-se a admirar a qualidade das partículas de silício que forravam seus pés e, por conseguinte, carcaça e vida, numa projeção otimista. Escolheu o grão que lhe pareceu mais belo, dentre os bilhões possíveis

(o amor)

e o pinçou com as unhas longas. Levantou a língua e descansou sob ela a areia.

Enquanto prosseguia sua viagem

(a trilha alcança a guilhotina do horizonte e além)

Paulo foi confrontado por demônios e diabretes e achou isso tudo muito maçante. Satisfazia-se mesmo com a impressão de que as cores da paisagem desprendiam-se de sua retina e flutuavam como vapores à sua frente e deixavam-se aspirar, o gosto de morangos, pêras, mangas e uvas.

Não raro tropeçou em si mesmo e engoliu um pouco solidão, por susto, por descuido. Expulsando lágrimas, concentrava-se na linha imaginária traçada à sua frente e no breve doce recém-surgido em sua boca. Era o grão dissolvendo-se lentamente, imiscuindo-se no coração & mente do peregrino.

Ao longe, casebres e contruções rústicas nasciam no aproximar-se. Paulo supôs que ninguém ali habitara nos últimos séculos, e considerou isso um bom augúrio. Talvez fosse o fim, pensou.

À frente da primeira construção, sua namorada esperava fincada no chão como uma estaca ancestral. Trazia um sorriso no rosto, o qual trouxe a paulo um sopro de horror. A areia desaparecera sob sua língua e nenhum gosto sobrara. Estavam sozinhos, como antes, e sempre.

genérico incolor

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