17.9.03

Das vantagens de ser burra feito uma porta

Ah, são incontáveis. Tentarei mencionar aqui as que julgo mais pertinentes, para que vossas senhorias e vossos senhorios possam entender este meu desejo deveras compreensível de, um dia, quiçá com o poder de minha descomunal força pensamentícia e um empurrãozinho da Marlene Mattos (já me preparo psicologicamente para o sacrifício de me sujeitar à sanha da cara-de-joelho), vir a me tornar a Xuxa.

Primeiramente, a burrice, via de regra, sempre vem acompanhada da ignorância. Poucos são os burros com interesse no saber, na informação (o leitorzinho me dirá que conhece infindáveis; eu concordaria, se não estivesse falando de uma burrice do tipo pai d'égua). E nada é capaz de gerar mais neurose, angústia, paranóia, ansiedade e hipocondria do que o excesso de informação. Um bom exemplo é o consumo desenfreado de detalhes compositórios alimentares. Há não muito tempo, quando a alguém era oferecido algo que não conhecia, digamos, salmão, este alguém perguntava: "É gostoso?" Hoje, ao comedor vem a lembrança de um artigo em um destes inúmeros cadernos sobre saúde, digo, doença, presentes em qualquer jornal, e o comentário, "Ah, tem ácidos graxos ômega três que combatem os radicais livres e retardam o envelhecimento, e também é bom contra o câncer. Vou comer". Vai achar uma merda, mas comerá assim mesmo, em nome da "boa saúde". E quando se comia uma costeleta de porco frita, pensava-se (e até se dizia), "Hmmm, que delícia!". Hoje, quando olhamos uma costeleta de porco, vemos um infarto agudo do miocárdio resultante de uma artéria entupida de colesterol. Um bufê de comida mineira assemelha-se a um compêndio ilustrado de patologia forense. Um burro, e ignorante, continuará dizendo, entre uma dentada e outra, "Hmmmm, que delícia!", sem o menor pudor. E provavelmente o burro morrerá senil aos 98 anos. Vê-se, pois, que o que apressa a morte não é o colesterol, mas o fato de se saber que ele está ali, qual abutre rondando a potencial carniça cardíaca. O que apressa a morte é a informação.

Segundamente, um burro dificilmente tem grandes responsabilidades. Se trabalha em uma empresa, jamais chegará a chefe (estou falando de burros honestos; até porque, é preciso alguma inteligência a um desonesto próspero). Está livre, pois, de um sem-número de preocupações estressantes. Ninguém pedirá a um burro que procure resolver um problema insolúvel; aos inteligentes, exigem-se verdadeiros milagres. O inteligente morrerá de infarto por estresse aos quarenta anos; o burro morrerá senil aos 98. Vê-se, pois, que o que apressa a morte é o estresse.

Terceiramente, um burro tem um círculo de amigos burros. Um inteligente, por força das contingências intelecto-pensamentais, terá um círculo de amigos inteligentes. E em geral com alguma cultura, um ou outro com bastante cultura. O inteligente, então, devorará autores ilíveis segundo qualquer critério apenas para acompanhar o passo de seus amigos. Verá filmes invíveis, assistirá a peças de teatro inassistíveis, ouvirá músicas inouvíveis. Tudo em nome da "cultura", esta praga devoradora que a classe média a-do-ra pensar que tem. E o que é pior, terá de fazer um comentário inteligente e profundo a respeito de toda a tranqueira inútil que consome. O burro, sem outra preocupação a não ser a tabela do Brasileirão e o preço do cimento, manterá a cabeça fresquinha e ventilada, sem as obstruções sinápticas resultantes do vigoroso tráfego neuronal, e sem o intenso fluxo sangüíneo exigido por um encéfalo trabalhólatra. O inteligente terá um derrame aos sessenta anos; o burro morrerá senil aos 98. Vê-se, pois, que o que apressa a morte é a cultura.

Quartamente, um burro não se enche de culpa à toa. Pode se sentir culpado sim, por um crime terrível, por exemplo, ou por ter efetivamente magoado alguém, digamos, quando chama a namorada de "rolha-de-poço com cara de paca" e ela chora. Mas sempre por bons motivos, como podem ver. O inteligente sente-se culpado por tudo; um efeito colateral do excesso de reflexão e raciocínio, somados à informação. Freud sempre estará presente, acossando-o com o espectro da mãe que, segundo consta, ele quis comer e não comeu (se comeu, é hoje esquizofrênico e sociopata). Sentirá culpa por qualquer prazer que tenha na vida, comer, beber, fumar, cheirar, dormir, foder. Tudo. Um burro fará tudo isso e mais um pouco e ficará feliz como pinto no lixo. O inteligente, sempre bem informado, se martirizará a cada vez que gastar uma pequena fortuna em supérfluos, lembrando dos milhões que passam fome no mundo. O burro, se tiver a carteira recheada, comprará as maiores birutices que jamais vai usar só pelo prazer de comprar. O inteligente morrerá de câncer aos 58 anos; o burro morrerá senil aos 98. Vê-se, pois, que o que apressa a morte é a culpa.

Quintamente, o inteligente tem angústias existenciais. Passa a vida chafurdando em porquês, o porquê da vida, o porquê da morte, por que a Xuxa, tão tacanha, é podre de rica e eu não. Devora filósofos cujo hermetismo faria o próprio Hermes quicar de vergonha. Por força do hábito de raciocinar e em busca de respostas, sai ligando A com B, B com C, liga todo o alfabeto ocidental e não chega a lugar nenhum. Desespera-se. O burro entrega tudo nas mãos de uma divindade qualquer e passa a vida cagando e andando, quase literalmente. O inteligente cortará os pulsos aos 43 anos; o burro morrerá senil aos 98. Vê-se, pois, que o que apressa a morte é a metafísica.

Estamos esclarecidos?

Eu quero ser a Xuxa!

All About Eve

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