1.9.03

Era um quarto realmente agradável. Daqueles em que se contam muitas histórias. Arejado, limpo, espaçoso – como parte do mundo que era, escolhi-o entre tantos outros que havia no hospital. ( Tive muita sorte em poder escolher.) Pensei que, ao se aposentar, bastariam a qualquer um este quarto e um piano, a felicidade poderia ficar para depois. Para mim a felicidade morava sempre na sala, eu poderia dar nela a qualquer momento. Mas ali, eu só contava com um quarto, a cordialidade de uns poucos amigos e umas idéias que me faziam lembrar de mamãe. Ao pensar nela, associei a papai, como dois pratinhos sujos aguardando na pia enquanto me ocupo em lavar os copos. Emagreço um pouco a cada dia, mas sinto-me forte ainda, o que significa um belo final de manhã. Ouço dizer que estou doente, embora não exatamente. E assim a doença permanece ininteligível. Pouco converso com as enfermeiras, sinto-me aliviada quando esquecem do meu nome ao trocarem os lençóis de tempos em tempos. De qualquer maneira, o esquecimento é uma virtude em ambientes de hospital. O fim da vida sempre chega para o paciente do 201, não para você. O que nos dá outra oportunidade. O relógio passa a assinalar as horas provisoriamente, compondo seus dias provisórios em que eu ia morrendo com facilidade. E assim morrer me pareceu mais fácil do que mudar de opinião. Morrer é fácil, ainda que imperfeito. Viver é interessante, ainda que limitado. A diferença está na espessura da linha que une uma coisa à outra. E um pouco de imaginação e menos aritmética. Gostaria de parecer espirituosa agora, vou precisar disso, sem ironia. Sei que já não consigo mover os olhos, só o olhar. Sinto-me calma e auto-sugestiva. Não penso no passado ou no presente. Meu corpo me aborrece às vezes porque existe, mas não sinto cansaço físico. É uma obra-prima saber esperar quando o espírito passa a ter pressa. E uma pressa que desconheço pois tampouco conheço o espírito. Ouço passos no 202, mas o ruído se decompõe gradualmente. Minhas sensações se espreguiçam e começo a amolecer. Dentro de poucas horas meu organismo fará uma pausa, não tenho por que me preocupar. Estou tão bem quanto antes. As luzes parecem estar se apagando ou foi a manhã que deu por encerrado o seu ofício? Estou cada vez mais certa de que aguardo um futuro e coloco nele toda a minha impetuosidade. Não retornarei a nada que não pertença a este momento. E é sem me despedir dele que atravesso o silêncio que finalmente toma conta de tudo.

Parula em surto de prosa caótica

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