19.9.03

a pessoa vai parar em situações onde nunca pensou estar nunca 

Foi.

Terça-feira eu tava lá, visitando as casas dos velhinhos, aí minha mãe me ligou e disse que Tia Dona tinha morrido.

Pois é, eu tinha essa tia-avó, sim, e o nome dela era Dona. E ela morava em Limoeiro.

Mas não havia proximidades, por alguma razão familiar obscura. Sendo que todo mundo que conhecia Tia Dona falava tão bem dela, que era tão engraçada e serelepe, que tava sempre toda contentinha, e não foram poucas as pessoas que disseram que eu parecia com ela. Encontrei-a duas vezes perdidas na vida. Câncer de estômago.

Muitas pessoas na minha família têm câncer de estômago, é por isso que a minha gastrite é uma coisa assim basicamente deveras preocupante, e eu definitivamente não devia consumir 2396 litros de coca-cola por semana, mas você sabe como é a juventude javali, "isso nunca vai acontecer comigo, pô, eu sou jovem!" etc.

Bestalhenta.

Câncer de estômago. De sofrimentos e dores e uma cirurgia que ela fez há três meses, pra poder morrer comendo e não definhar tragicamente (mais), porque não dava mais pra fazer radio ou quimioterapia e cirurgia de ressecção do tumor também era impossível. Pois se operou, sem saber que tinha câncer, e quando voltou a comer direitinho, achou que tava boa.

Eu não sei se isso é crueldade ou se acaba sendo bondade. Isso de não contar, eu digo. Porque ela viveu esses últimos 3 meses bem, comendo direitinho, sem passar mal, sem grandes problemas, e jurava que tava curada, a pobrezinha. Ninguém tinha coragem de falar.

Acabou morrendo na terça, e eu soube quando tava na casa de Dona Elisa, que chora toda vez que eu vou lá porque eu pergunto como ela tá e ela chora de tristeza, porque não se levanta da cama e depende das pessoas pra fazer qualquer coisa, qualquer coisa, sendo que é lúcida e consciente e sofre, sofre tanto.

Viver é foda, eu penso, a chance duma coisa muito ruim acontecer com você é tão grande, meudeus, que chega me aparecem todos os medos da vida.

Vai ver foi nessa hora niilista que o maldito vírus da gripe me pegou; diz que as pessoas 'desenganadas' têm baixas importantes no sistema imunológico. Não sei.

E a prima minha que me hospeda, a irmã de Chaves, gostava muito de tia Dona, e vivia sempre falando dela, e de como era triste toda a situação e de como ela dizia que queria um remédio pra desinchar a barriga, que aí tudo ia ficar bem, e de como ela (a minha prima) tinha muitas vontades de chorar todo santo dia quando pensava na tia.

Minha mãe foi pra Limoeiro, pro enterro; e tios, e meu avô, que era irmão, e pessoas, de maneira que eu fui também, pro velório, e depois pro enterro.

Enterros, eu já disse isso, são as coisas mais esquisitas e incômodas e absurdas de que tenho notícia. Um enterro. Meudeus. Odeio enterros e evito, evito, evito tanto.

O velório foi na casa dela própria, Tia Dona, e eu ia chegando e a rua toda tava parada, carros, pessoas nas calçadas das casas, os chororôs que sempre se vê, mas era quase como se não fosse muito triste, sei lá, uma coisa esquisita. Esquisita assim, de pouco usual, mas na verdade bom, né? A morte, essa danada, com a qual a gente num se acostuma nunca.

Então, às cinquimeia, saiu o cortejo. Sim, é, os filhos carregando o caixão pelo meio da rua, e todo mundo atrás, em direção ao cemitério, cantando "segura na mão de deus e vai", as pessoas todas que tavam nas calçadas, e atrás carros, e para-se o trânsito, e para tudo, e as pessoas nas janelas das casas por onde passava o cortejo, e eu de repente me vi ali no meio, sem saber o que dizer à irmã de Chaves que chorava tanto, tive que apelar pro clichê do "foi melhor assim", mas que coisa, eu nunca sei o que dizer às pessoas nessas horas.

É. Algo me diz que era bom aprender.

Na porta do cemitério, isso já escuro, pra lá das seis, paramos. As pessoas seguiram. E eu merma é que num quis entrar. Ou não queria, porque aí a irmã de Chaves me puxou pelo braço e começou a falar coisas que eu não tava ouvindo, mas eu tive que ir pra onde ela tava me levando, bem, ela é forte e decidida, parece. E queria me mostrar o túmulo do seu pai, e do seu irmão, por alguma razão ela queria muito me mostrar, e foi me puxando cemitério a dentro.

MUITO, eu digo, de verdade, porque o cemitério tá com a lotação esgotada e eles vão construindo os mausoléus um colado no outro e você não consegue passar por entre os dois sem se esfregar nas paredes das tumbas, perceba, perceba, e ela se enfiou lá dentro e foi me puxando, e quando eu acordei, tava com o pé preso num buraco no meio de dois mausoléus às seis e meia da noite com morcegos dando rasantes (é com ésse?) por ali e como eu vim parar aqui?

Mas não era sonho, e cheguei do outro lado e vi as fotinhas das pessoas e as datas e cemitérios são coisas estranhas e tristes demais.

Ela me chama de "amiga" e agora me contra segredos, e me mostra o túmulo dos parentes e me dá chocolates e... Me sinto culpada. Eu sou, eu sou emocionalmente embotada, assumo. Culpada. Mais culpada ainda porque nunca conheci tia Dona direito, e ela devia mesmo ser uma gente muito boa, mas agora num dá mais tempo.

autonauta da cosmopista

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