O dia que eu falei com deus
Não me perguntem detalhes, eu lembro de poucos. Só sei que eu dei uma pirada e quis ir sozinha para a praia. Meus irmãos estavam lá com meus avós. Era a combinação perfeita para um fim de semana tedioso e sonolento. Eu, no auge dos meus dezessete anos, precisava ficar só, o que não significava ficar longe de pessoas, mas de um namorado bonzinho que, dois meses depois de me conhecer, prometia durar pra sempre na minha vida. Detestava encontrar esse tipo de homem. Não era justo! Era como se eu rezasse por paixões passageiras e papai do céu me enviasse amores eternos. Uma sacanagem pra qualquer ser humano com menos de cinqüenta anos. Em crise com meu estado civil, arrumei as malas e desci a serra. Seria uma boa tentativa para pecar e voltar a ser solteira.
Tédio, tédio e tédio! Saí do apartamento e fui dar umas bandas pela orla. Viro a esquina e dou de cara com a minha irmã e sua patota. Eu e ela, naquela época, éramos como cão e gato, mas não é que a danada tinha uns amigos bonitinhos? Onde eu estava, que não tinha percebido aqueles meninos? E eu achando que a sonsa só andava com pirralhos! Sonsa eu, que havia inventado de namorar logo depois de um super regime. De nada adiantava ficar gostosa se era pra ter um namorado só. Tratei de me enturmar e, quando vi, um luau estava na programação.
Como luau sem álcool não tem a menor graça, eu e uma espécie de nativo fomos comprar vinho. Não me lembro como, mas conversa daqui, conversa dali, aceitei uma disputa pra ver quem de nós viraria mais paulistinhas (uma bebida estúpida que bebiam como se fosse tequila).
Quando voltamos para a areia, a fogueira já estava acessa. A garotada não quis vinho, estavam muito entretidos com um papo de entregar corações. Eu corria em volta da fogueira bebendo o vinho no gargalo enquanto eles se declaravam e diziam o quanto se amavam. Blah! Que vontade de vomitar. Eu estava tão bêbada que, se eu tivesse caído naquela fogueira, teria explodido. O engraçadinho que ganhou de mim no vira-vira de paulistinhas, colocou-se de pé e leu pra mim uma declaração apaixonante em um português sofrível. Ele era surfista e lindo, podia errar no que quisesse. Abracei-o emocionada. Quase nos beijamos. Tive vontade de beijá-lo. Jogada em seus braços e a um centímetro dos seus lábios, meu desejo foi interrompido pela lembrança do namorado que melou minhas intenções.
- Vamos correr?
Ele caiu naquele papo de bêbada ajuizada e, num jogo de pega-pega, corremos alguns metros, até que ele quis se jogar no mar. Eu, zonza, dei-lhe as costas e continuei correndo. Segui a mancha azul da estátua de Iemanjá que apontava na minha frente. Queria ver se ela ainda se parecia com a minha mãe. Viagem não só de pinguça, mas de infância também. Quando pequena, devido à semelhança, eu achava que a Iemanjá era uma espécie de identidade secreta da minha mãe. Assim como a She-Ra era a princesa Adora ou como a Mulher Maravilha era a princesa Diana. Enquanto eu afundava os pés na areia, percebi um vulto ao meu lado. Aquele pedaço da praia estava deserto. Olhei para um lado, para o outro e vi, ao lado da Iemanjá, uma silhueta que me pediu um cigarro. Virei o rosto à procura do rapaz que corria ao meu lado - sabia que ele tinha cigarros. Em uma fração de segundos, a silhueta desapareceu.
Confusa e arrepiada dos pés a cabeça, eu chorava e corria em direção ao surfista com a certeza de que aquela tinha sido uma visão divina.
- Eu vi deus! Eu vi deus e ele me pediu um cigarro! Eu vi deus e agora eu vou ter que morrer!
Ele chamou minha irmã. Achou que era grave já que eu não parava de dizer que, depois de ter visto a sombra de deus, a morte estaria à minha espera.
Não me recordo de uma bebedeira mais surreal do que aquela. Eu dizia bobagens, ria, declarava meu amor pela minha família - todas essas merdas que estamos cansados de ver em bebuns. Acho que me deram um banho e me trancaram no quarto. Eu queria correr pelada até os pés da estátua. Encanei que aquela seria uma forma de implorar pela minha salvação.
Lá pelas tantas da madrugada, meu namorado e um casal de amigos apareceram por lá. Desembestei a chorar. Ele tinha acabado de tirar a carteira de habilitação, pegou o carro escondido do pai e foi me ver. Disse que estava preocupado, com um mau pressentimento e que não conseguiu esperar por notícias. Esperou o pai dormir, pegou as chaves, os documentos e arriscou.
Me encontrou de calcinha, gargalhando pelo quarto em um estado deplorável. Quando ele apareceu, comecei a chorar e pedir perdão. Além de bêbada, uma imbecil! Minha consciência pesada denunciava meus pensamentos impuros.
Me colocaram no carro e acho que eu dormi. Acordei um tempo depois com a picada de uma agulha. Glicose na veia. Eram os desígnios de Deus.
Amarula com Sucrilhos
21.10.03
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