1.11.03

Quando minha mãe disse baixinho olhando-me nos olhos: "não trabalhe muito, não vale a pena", tentava apenas me poupar. Reabilitava-me de uma estafa e queria retornar ao serviço, esquecido de quando, ao chegar em casa vindo do trabalho, arrebentara a pia do banheiro ao apoiar-me no meio de um desmaio, completa e temporariamente aniquilado. Os olhos preocupados e meigos de minha mãe velando seu pálido e jovem filho na manhã distante, trazem-me conselhos desprezados. Por que os filhos não atendem às mães? E eu, especialmente, por que fui tão desobediente daquela vez e de inesquecíveis tantas outras? Por que fui tão rebelde, e o sendo, como fui domesticado? Como é que se amansa um selvagem? Talvez com presentes, como os que ganhei de minha mulher, um veneno dosado, devagar e pacientemente, e com exercícios, tornando-me tão cansado que até o pensar num certo tempo tornou-se uma atividade sempre interrompida pelo sono mortal que me atingia impiedosamente. E com castigos, retirando-me as delícias com que me viciou. Os presentes de minha mulher, sim, eles queimavam minhas entranhas, o ventre que eu tocava, o corpo que eu possuía e a consequente febre que que quando ausente me ardia. Eis duas mulheres, uma pacífica e cordata - minha mãe -, e outra ferina, dominadora, aquela com quem me casei fazem quase vinte e cinco anos, um inesgotável poço de desejo. Se não mais ganho presentes e tenho espaços para andar e tempo para pensar, ressurjo nesta silenciosa madrugada de primavera preparando-me para a liberdade. Mãe não tenho mais. Em compensação, a mulher que me restou em vida é a tormenta, o trovão, a ventania maldita que quase me derrotou. Eu a vi passar por perto horas atrás arrastando consigo um perfume de sabonete após ouvir os ruídos da água do chuveiro caindo enquanto ensaboava o corpo e ainda quis dele estar junto entre espumas e ardências, a língua desejando ser membro, o pênis engolido numa chupada. Como pude tantas vezes poetar arfante sobre aquele corpo? Distante, talvez, mas não esquecido e na memória como se a desenhasse, traço seu contorno numa linha segura a partir de sua testa proeminente, o nariz curto, lábios pequenos e o forte queixo arredondado de onde despenco pescoço abaixo atingindo os seios que sempre couberam na palma da mão e o corpo macio, o umbigo recolhido, até o púbis saliente antes das fortes pernas de quem regularmente se exercita, sem a menor estria, e pés delicados, pernas que me inspiraram toda uma série de desenhos, pinturas e esculturas. Quis falar de minha mãe e desviei a atenção inesperadamente, mas estou preparado para anotar o que me passar pela cabeça, para que o esquecimento não me traia e ainda haverei de contar de outras mulheres, de outros amores, sucessos e fracassos, e de como se faz um homem, feito boi marcado.

Mulheres em Longos Dias, Belas Noites

Nenhum comentário: