20.12.03

O videotexto (Post XXVI)

Eu estranhei quando vi uma figura meio redonda e branca se aproximando do carro. Não foi possível identificar se era homem ou mulher, mas não acreditei que fosse o Locutor.
A pessoa, a qual eu ainda não havia identificado o sexo, caminhou até a guarita do prédio e me fez rezar quando o porteiro apontou na minha direção.
Não podia ser. Inconscientemente, me fiz de rogada e apertei o botão que fechava o vidro. Pensei em ir embora, mas ele bateu no vidro do carro e me deixou sem muitas opções. Meio atordoada, meio indignada e sem acreditar no que estava acontecendo, tentei ser simpática para não causar traumas na criança. Abri todos os vidros, a porta e deixei que ele entrasse.
Não resisti. Antes mesmo de cumprimentá-lo eu perguntei:

- Garoto, quantos anos você tem?

Ele parecia preocupado e transpirava muito. Parecia que estava fugindo da polícia.

- Dezoito.
- Mentira! Nunca que você tem dezoito anos! Deixa eu ver seu RG.

Eu e minha mania de ver RG.

- Eu juro!
- Fala a verdade!
- Está bem, está bem... Eu tenho quatorze.
- Eu não acredito...
- Eu não disse antes porque achei que você ficaria brava, e eu gosto de você, e achei que você não falaria comigo se soubesse a minha idade, e....
- Não é possível... Menino, como é que você entra no videotexto dizendo que é maior de idade, que trabalha como locutor de rádio, diz uma porção de mentiras?
- Mas é o meu sonho...
- Então diz que é sonho criatura! E onde já se viu mentir a idade? Isso é perigoso sabia?

Por alguns instantes eu fiquei meio abobada. Não sabia se me esbofeteava ou se botava o moleque pra correr dali.

- Olha, não fica brava... eu não posso ficar aqui por muito tempo porque a minha mãe não gosta que eu converse com mulheres mais velhas e eu não quero que ela te veja, porque senão...
- Como assim mulheres mais velhas?
- É que você não é a primeira mulher mais velha que eu conheço.
- O que? Menino, você é louco!

O meu viking era um garoto gordinho, em fase de crescimento e afetado pela desproporção física que os homens sofrem na adolescência. A voz, hora grossa, hora desafinada nas horas de desespero, o fazia quase gaguejar. Não era uma questão de corresponder ou não à imagem que eu havia feito; o que me incomodava era o fato de ter sido ingênua e carente a ponto de não ter percebido antes. Por mais desenvoltura que o garoto tivesse para escrever ou falar no telefone, desde o começo eu tive indícios do que se tratava. Não vi porque não quis e porque aquela era uma forma de fugir das decisões que eu precisava tomar. Me senti uma imbecil e só queria sumir daquela cena.

- Desculpa não ter contado, só não queria que você deixasse de gostar de mim.
- Você mentiu pra mim! E com essa voz... Como eu podia imaginar que você era uma criança?
- Eu não sou criança!
- Olha, eu não vou discutir com você. Vai embora por favor...
- Tudo bem, eu vou. Mas quero que você aceite o meu presente.

E ele tira uma estrela ninja do bolso.

- Foi o meu avô que me deu... Eu tinha cinco anos e ele morreu dois dias depois. Guardei ela comigo esses anos todos e agora quero que ela fique com você para que te dê sorte...
- Eu não quero! Desculpa se parece grosseria, mas você guarda isso e dá de presente para alguém que mereça. Aliás, não dá pra ninguém! Guarda de novo. É um presente do seu avô. Não é coisa pra sair dando. Além do mais, onde é que eu vou enfiar uma...

Antes que eu terminasse a frase fui interrompida por uma ruiva tamanho família que, enfurecida por seus instintos maternais, avançou nos meus cabelos gritando que eu era uma velha tarada querendo corromper o filho dela. Ela não parava de gritar que o moleque só tinha treze anos de idade e que estava cansada da velharada que se aproximava do garoto. Foi então que eu entendi melhor o que aquele menino fazia dia e noite no videotexto. Mas da minha boca só saia um número e uma interrogação: "Treze? Treze? Treze?", como se isso fizesse diferença. Um tremendo banzé! O garoto, dando com a estrela ninja na mão da mãe para que ela me soltasse e eu tentando me livrar das garras da progenitora.
Fui salva graças à serenidade e sabedoria da Sueli. Munida do seu Continental sem filtro, ela viu o zelador do prédio com uma mangueira de água lavando a calçada, pediu emprestado e disparou o jato d'água contra a mãe do locutor mirim.
Mesmo sem nunca ter olhado diferente para o jardim da infância, voltei para casa me sentindo, o que seria hoje, a versão feminina do Michael Jackson e, depois de ter chorado duas noites seguidas, jurei que nunca mais acreditaria em vozes e apelidos sexys. No meio da crise e chorando ao som de Lionel Richie, liguei para a casa do clone e combinamos de nos encontrar. Eu precisava acabar com aquele noivado.

--------------------->> Continua.

Amarula com Sucrilhos

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