Existem dois tipos de pessoas. As pessoas que pensam em grupo e as pessoas que pensam sozinhas.
O que isso significa exatamente? Existem pessoas que não duvidam de nenhuma informação, desde que ela tenha sido excessivamente compartilhada por um grupo de pessoas. Se o assunto saiu no jornal, na televisão, nas revistas ou se está na boca do povo, é verdade, existe.
Agora, se não é uma coisa que se escuta por aí, se não parece com nada que ela tenha visto na vida, se ela não pode reagir imediatamente por não encontrar ferramentas para isso, então não vale, não tem lugar, não importa.
A não ser que quem fale esteja falando a respeito tenha muita credibilidade, seja uma autoridade no assunto (o que não pode acontecer afinal, em geral quem é autoridade num assunto, é conhecido). Bom, daí começa o problema.
Uma pessoa que tenha se relacionado com algum tipo de conhecimento, ou seja, que tenha agido sobre ele, e não apenas aceitado ou recusado, dito "gosto" ou "não gosto", mas que tenha ido dormir com suas próprias dúvidas, perdido noites de sono, recortado, separado, articulado um conhecimento, não pode ser uma autoridade no assunto porque uma autoridade geralmente está na boca do povo, pode ser traduzida pela mídia, ganha status. Mas, se uma pessoa não fala sobre nada acessível, nada que encontre o conforto do consenso, então ela não existe.
Hoje, as pessoas só conseguem entender uma coisa cuja existência e comportamento elas já aceitem e conheçam de antemão. As pessoas entendem que as mulheres não têm os mesmos direitos dos homens porque elas já leram a respeito disso em algum lugar e traduzem suas experiências nesses termos, nesses moldes. Sem no entanto, poderem sequer provar o que sabem em moldes diferentes e que por exemplo, excluam essa realidade previamente instituída.
Por esse caminho, qualquer discussão traduz apenas um insuportável ato de retomar os diversos discursos sobre determinado assunto, compartilhados e mais uma vez compartilhados, o que faz com que as pessoas atualizem informações e visões de mundo, visões estas de forma nenhuma surpreendentes ou novas, muito menos perturbadoras: visões comuns. comuns. comuns.
Por mais que os números da violência estejam crescendo, essa é, num certo sentido, uma informação mentalmente apaziguadora, porque ela é extremamente difundida pela mídia, e ela manipula determinadas reações de determinadas maneiras. O mundo é cada vez mais insuportável sem um cadeado de oito travas, morar numa rua sem guarita é enfrentar um mundo sem leis. O que as pessoas entendem por violência faz parte de um sistema de referências também compartilhado, mas o mais estranho é que a maior parte das pessoas não pode reconhecer a violência que pratica ou que sofre diariamente, simplesmente porque ela não aparece sob a forma que a violência é conhecida. Por isso é que muita gente fica cansada no final do dia sem saber realmente o motivo. Comigo também, mas é pior, eu fico cansada e mais cansada ainda por saber que as pequenas violências que eu estou sofrendo ou praticando teoricamente não existem, e isso é definitivamente perturbador.
Imagine um jornal que ao invés de dar a notícia de um assalto a banco diz: Hoje à tarde, Fulana de Tal, 44 anos, olhou para a roupa de Cicrana de Tal, 18 anos, com olhar de censura e ódio no coração. Fulana está respondendo a inquérito por atrapalhar fisica e emocionalmente a caminhada de Cicrana, que sentiu náuseas ao chegar ao final da rua e precisou ser hospitalizada e tratada com elogios e muitos abraços sinceros e olhares de admiração (e volúpia) do pessoal do hospital. Mas não, as pessoas se sentem mais chocadas com um assalto a banco do que com uma mulher de meia idade que quer destruir a beleza da vida.
Na Universidade, - o jardim do saber - , o aluno, para enfrentar um curso, precisa apenas descobrir o tema da tese do professor. Depois disso, tudo fica muito claro. Com essa informação, o aluno que pensa sozinho vai poder escrever suas provas e trabalhos, podendo ou não conceder a si mesmo a possibilidade de ter ou não problemas acadêmicos/teóricos/burocráticos com os jardineiros. O professor, ao invés de uma referência nobre, de um mestre querido e inesquecível, de um grande amigo, passa a se transformar numa espécie menor de homem, envolvido e inebriado de si mesmo e de questões teóricas que não chegam a ser problemas, são apenas soluções fáceis para ressaltar o valor de uma tradição que é compartilhada, da mesma maneira que as opiniões de jornal: de uma maneira que encontra pouca resistência à sua livre, eterna e infernal existência, a não ser pelo outro tipo de pessoa, "pessoas que pensam sozinhas".
Para "pessoas que pensam sozinhas", é claro que eu deveria fazer uma ressalva, afinal o conhecimento não brota do chão, ele é articulado, refeito, recuperado, transformado por muitas pessoas. No entanto, é válido nomear esse grupo de pessoas como pessoas que pensam sozinhas porque isso realmente não é bem visto. Uma pessoa que pensa sozinha é capaz de discordar de qualquer entidade acadêmica, viva ou morta, honesta ou picareta, lúcida ou capenga, conhecida ou estranha.
Uma pessoa que pensa sozinha não admite que um punhado de dados no jornal dite sua maneira de refletir sobre suas experiências. Uma pessoa que pensa sozinha está sozinha e quase sempre contra a maioria, porque é uma pessoa que entende a solidão não como uma doença, mas como uma maneira de respirar e de manter sua existência com dignidade e longe de ser violentada ainda mais.
Uma pessoa que pensa sozinha precisa pensar por si mesma e pensar pelos outros, precisa recuperar sua autonomia de pensamento a todo instante e ainda encontrar uma maneira de dialogar com uma pessoa que pensa em grupo de um modo humano, para que ela não fique inebriada de si mesma e de vaidade e de sentimento de indiferença pelas pessoas que pensam em grupos e que estão tentando dar suas opiniões, renunciando ao conhecimento de uma forma terrível aos olhos das pessoas que estão testemunhando isso.
Uma pessoa que pensa sozinha é considerada estranha e é estranha, porque ela está, num certo sentido, caminhando por muitas pessoas que estão apenas repetindo um modo de ser de mundo que não traz felicidade, que domestica suas idéias e atitudes, que apenas traça uma linha para que elas possam fincar seu pensamento e seguir sempre em frente na direção da infelicidade.
tudodenovomesmo
30.1.04
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