30.1.04

Minha mãe sempre me disse que a gente não deve sofrer por antecipação.Linda e poética teoria, com sinos budistas tocando ao fundo. Na prática, desde cedo a coisa se mostra bem diferente. Basta a gente entrar no pré-primário e o mundo indaga: -O que é que você vai ser quando crescer? Já não bastasse o esforço pra aguentar até o prometido sábado no Playcenter. Estes conceitos, incutidos desde muito cedo, ficam gravados em nosso cérebro feito a música da cantora Luka. Se a gente conhece uma pessoa bacana, porque não investir? Se a investida dá certo, porque não namorar? Se o namoro vai bem, então: -Não vão casar?!? Daí a gente casa, e quinze minutos depois começa o aluguel: -E a cegonha, chega quando? É uma corrida desenfreada: vamos crescer logo, pra namorar logo, pra casar logo, pra ter filho logo, pra ficar velho logo, pra morrer logo, pra ressucitar logo... Mas a verdade é que chegamos naquela idade em que algumas verdades se revelam pra nós feito os seios de Dercy Gonçalves: nuas, cruas, apavorantemente verdadeiras e sem o menor pudor. A vida é uma estrada de mão única, e o tempo não está passando mais devagar. Geralmente quando isto acontece, a gente está naquela fase da relação que a gente nem lembrava que um dia fosse chegar. Passados os momentos lindos, os péssimos, os medonhos e os lindos novamente, o barquinho da vida a dois navega por águas caribenhamente calmas. Justamente quando as finanças estão equilibradas, os horários ajustados e os opostos tolerados,é nesta hora que as vontades coincidem: -Que tal se a gente tentasse ter um bebê? Quando um casal que pensa em "um dia" ter filhos, decide que chegou a hora de ter filhos, um misto de alegria e pavor inunda suas almas. Involuntariamente, é dado início a uma vasta e desalentadora lista de prós e contras. Com os contras ocupando páginas e páginas, e os prós ocupando duas linhas. Nesta hora nossa atenção se volta para os casais com filhos, e principalmente, para os filhos destes casais. Passamos a frequentar até festinhas infantis, nas quais o raro exemplar de criança que reúna mais de duas qualidades, tais como ser meiga, inteligente e bonitinha, é observada atentamente e até fotgrafada, além de ser alvo de comentários que persistem até o meio da semana: -Bonitinha aquela filha do Tiago e da Chris, fofa! -Inteligente! -E meiga! Internamente a música é outra: -Será que os nossos serão assim? Mas nunca pensamos em nós. Como seremos assim que nos tornarmos pais de crianças, independentemente de serem estas meigas, hiperativas ou simplesmente indomáveis? A resposta é: pare de olhar para os petizes, e deite seu olhar sobre estes pais que vês a tua frente, e estarás diante de um espelho. Eu? Deixando meu filho correr entre os convivas feito um motoboy na Rebouças, derrubando os copos de coca-cola como se fossem espelhos retrovisores? Sim, tu mesmo. E pronunciarás coisas como: -Meu filho é totalmente sinestésico! ou -Prefiro roupas mais orgânicas. E falarás sobre pediatras holísticos, métodos indígenas de alimentação e sistema cognitivo. E sobre comunicação por sinais e curva de crescimento. Acredite em mim; eu também achei que comigo fosse ser diferente.

Papagaiada

Nenhum comentário: