25.2.04

Infância Perdida

Ela tinha as mãos suadas e um jeito frio de olhar. Sentaram-se à mesa numa mesa distante do centro do mundo. Coca com gelo furado para ele, chope escuro com uma dose de tequila para ela. Um brinde aos velhos tempos. Ele quase não lembrava mais dos velhos tempos. Tinha onze anos. Ela, quinze. Ou dezesseis. As famílias eram amigas e um dia ela o estuprou no quintal de sua casa. Ele sempre brincou desse jeito com ela, chamando a aventura de estupro.

"Adoraria forçá-lo a isso novamente."

Ele engasgou com o gelo ao ouvir a provocação. Tudo nela era provocação. Quinze anos depois ela continuava manipulando-o, como se ele ainda usasse calças curtas e rosto sujo de terra.

O que parecia ser apenas um encontro-casual-entre-amigos-de-infância-que-não-se-viam-havia-milênios se transformou num jogo erótico de desfecho imprevisível. Ela parecia interessada em descobrir o quanto ele se recordava do passado em comum. Ele falava da árvore seca, do riacho, da praia deserta nos invernos melancólicos.

"Infelizmente o passado está morto."

"Não diga isso, é bom ter recordações."

"Não para mim. Eu preciso apagar todas as marcas do meu passado e é uma pena que você faça parte dele."

O revólver saiu da bolsa como num passe de mágica. Tinha silenciador e tudo. Ele não teve nem tempo pra pensar que era uma brincadeira.

Três tiros depois morria, surpreso. Ela não conseguiu disfarçar a profunda tristeza, mas mesmo assim saiu correndo do lugar sem nem olhar pra trás. Alguma coisa ficou perdida para sempre na infância dos dois. Algo sinistro e secreto, que por certo ele nem lembrava.

MegaZona

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