18.3.04

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(...) A passo de escoteiro, você consegue chegar ao centro do lugarejo em não mais que deleitáveis vinte e alguns minutos. São duas ruas paralelas, uma cansada de seus paralelepípedos e outra do mesmo barro quase ocre e sempre seco e muito rachado da estrada onde você encontra (fazendo o caminho de volta) a placa pregada na estaca. Entre elas você imaginou que haveria uma praça, mas para seu constrangimento não há praças na cidade. Um observador mais atento em verdade nos diria que não há quase cidade na cidade, mas ele não foi convidado para este quinhão da narrativa.

Garotos de calças curtas brincam nas calçadas que alguém plantou em frente às casas, menos à beira do armazém colorido. Trata-se da única edificação a quebrar a monotonia do centro da cidade, de resto marcada apenas pela geografia acidental de algumas residências. As crianças de Baixo do Ribas têm lábios rachados e narizes que sangram a todo momento, tornando a crostinha vermelho-negra um acessório corriqueiro ao redor de suas narinas. Possuindo apenas duas ruas para seus folguedos, é nada menos que previsível que estas crianças costumem explorar os arredores da urbe. A municipalidade de Baixo do Ribas também é seca, quase ocre e coberta de pó e rachaduras, com exceção de um pequeno bosque de vegetação rasteira e do único lugar no qual os pequenos não são bem-vindos para brincar: a velha pedreira.

A velha pedreira não é uma pedreira. Não existem rochas no perímetro de Baixo do Ribas, a cidade construída, povoada e esquecida ao final de um caminho ressecado protegido pela vertigem de seus barrancos. Se você virasse à esquerda ao fim da rua de paralelepípedos e tivesse a persistência de abrir caminho por entre o bosque de arbustos espinhosos de folhas quebradiças e depois tomasse de novo a sinistra e só então seguisse em linha reta por quase metade de um dia, acabaria chegando à velha pedreira. Tivesse você a felicidade de palmilhar esta via proibida no dia correto e na hora exata, encontraria três crianças – duas garotas de vestidinho de chita, um menino pançudo – descalças, mochilas de lona nas costas e calos curiosos nas mãos, desbravando o único lugar que lhes é vetado em Baixo do Ribas, cidade que, como qualquer lugarejo sem muito contato com as massas civilizatórias, cultiva grande respeito por seus tabus e não costuma dar atenção a porquês.

Mas você não estava lá e nada viu, então leia:

Jamais alguma criança de Baixo do Ribas pisara na velha pedreira. Na verdade, há incontáveis eras nenhuma criatura de qualquer idade ou espécie encostava o pé ou a pata ou o exoesqueleto ou qualquer parte do corpo dentro de seus limites, nem ao menos para tentar entender como um lugar poderia ser chamado de pedreira em uma região carente de rochas. Até os fabulosos besouros quadricórneos, onipresentes na região, receavam chegar muito perto dela, assim como as já extintas serpentes emplumadas. A primazia dessa exploração coube a Evita, Lili e Adinho, que de posse de seus óculos de natação – para proteger os olhinhos da poeira penetrante – e de um extenso cabedal de ferramentas – para impedir qualquer intransponível surpresa – ingressam na velha pedreira e caminham com muito gosto, algum temor e considerável excitação por seu território. A velha pedreira:

Um espaço quase circular em sua perfeição, se observado de uma altura aproximada de nove mil pés. Para os que estão no solo, apenas um descampado muito amplo, destacando-se do restante de Baixo do Ribas por seu solo muito fofo e de um tom definitivamente diverso de qualquer coisa que lembre o ocre. A cada passo, as crianças deleitam-se com o tato da superfície quase movediça nos cascos de suas solas. Mesmo ainda não tendo sido convidado para esta narrativa, o observador mais atento ressurge para nos revelar que este solo é composto de minúsculos fragmentos de rocha, mais exatamente de todas – todinhas! – as rochas que um dia existiram na região. Reduzidas a minúsculos grãos de poeira macia quase esbranquiçada, foram determinada tarde reunidas em círculo pelos zelosos Gigantes de Muito Antanho, à guisa de cemitério. As três crianças abrem as banguelas quando, sem precisar espichar muito as orelhas, escutam o ruído que o solo peneirado da pedreira faz ao ser compactado pelo peso de seus corpos. Entre latido e lamento, tão áspero quanto agradável, é impossível ignorá-lo enquanto continuam a deixar pegadas macias e inegáveis atrás de si. Assim que chegam ao ponto que consiste no exato centro da circunferência da velha pedreira, Lili estica os braços para o alto de modo a reduzir a tensão em seu esqueletinho e anuncia:

Lanchinho!

(...)

failbetter.

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