26.3.04

Com a morte de meu pai, cabe-me agora providenciar o inevitável esvaziamento de uma casa inteira, a casa onde cresci e de onde saí aos 25 anos, a casa que meu avô materno fez erguer no final dos anos 40, a fim de que sua filha, quando viesse a se casar, morasse com o mesmo padrão de conforto a que fora acostumada e - aqui a presumida intenção principal - não ficasse muito longe dele.

(...)

Não posso continuar mantendo aquela casa. Nem teria cabimento eu deixar meu apartamento e voltar a morar nela. É grande demais para mim, exigiria manutenções constantes e dispendiosas. A casa, que já foi um lar, tornou-se apenas um imóvel, uma herança. Eu a venderei tão logo me seja possível, porque assim deve ser, e será, e acabou-se!
Provavelmente o novo proprietário botará abaixo metade daquele imóvel, mandará raspar todos os florões, as guirlandas, os medalhões que enfeitam aqueles tetos; derrubará muitas paredes, modificará as escadas, arrancará portas e janelas. Que seja, já não me importo mais. A velha casa, aquela que existe entre minhas lembranças, não pode ser desfigurada. Ela permanecerá sempre comigo, para o bem e para o mal, entranhada.

Estive pensando no que eu gostaria de retirar daquela casa física e conservar comigo. Alguns quadros, sim, objetos de certo valor artístico, um carrilhão vitoriano que soa lindamente, um lustre enorme, de oito braços, esculpido em madeira mil vezes mais dura que a minha cabeça (não me perguntem em que teto vou pendurar aquele polvo). Ah! eu gostaria (por razões sentimentais) de poder ficar com o sofá preferido de minha mãe, que é vitoriano e forrado com uma seda francesa de verdes profundos, sem um único defeito. Mas onde eu colocaria um sofá wildeano daqueles? Nem pensar! Nem pensar! O sofá será vendido e provavelmente o comprará, num antiquário qualquer, uma dessas emergentes vulgares, dessas deslumbradas imbecis que vivem falando em dinheiro, em grifes, mas nunca aprenderam que chic é algo que se tem e não algo que se é*. Dane-se o sofá vitoriano. Trá-lá-lá! Que vá receber outras bundas, e bem ordinárias, por certo. Uma imagem horrenda me chegou agora mesmo: a emergente vulgar deitada naquela seda e abrindo as pernas para um Wandercleyton - garoto de programa bem dotado. Bem, o que tenho eu com isso? Assim é a vida, não é? Dane-se!
Dane-se também o par de poltronas Luis XVI, que já perdeu todos os dourados e precisaria de reparos urgentes de um tapeceiro.

Confesso que senti certa raiva do meu pai, por ele ter acumulado tantas coisas, tantos objetos, coisas que agora se transformaram num fardo, muito mais do que num prêmio.
Minha mãe sempre quis se livrar de muitas daquelas velharias, mas ele, meu pai, jamais permitiu. O sonho de minha mãe era morar em um apartamento pequeno, moderno e prático, bem longe daquele acervo de inutilidades. Meu pai, muito ao contrário, cultuava cada objeto, não se desfazia de nada, e a casa onde vivia era o altar festivo de suas vaidade tolas e chatas. Quantas ilusões o guiaram do berço ao túmulo! - é uma constatação, não uma pergunta. E como ele deve ter sofrido, sendo tão apegado a essas ilusões! Pouco antes de ele morrer, fez-me prometer que eu preservaria a casa, preservaria carinhosamente seus tesouros. Prometi, menti despudoradamente, disse as besteiras todas que ele queria e precisava ouvir. Agora farei o que deve ser feito: tudo muito diferente do que seria a vontade dele! Não sinto culpa, não. Sinto alívio. Chega de altares e atavios, chega de gobelins empoeirados. A cerimônia terminou. Fim da liturgia pagã!

Quantos desencontros de sonhos, meu Deus! É impressionante! Eu, meu pai, minha mãe, cada qual olhando para uma direção diferente. Assim foi a nossa vida. Nunca pudemos caminhar de mãos dadas, nunca. Dane-se também a fantasia de que a felicidade será concedida apenas aos caminhantes que seguem bem juntinhos em direção a Oz!
Jamais consegui agradar a meu pai, que eu saiba. Não lhe dei desgostos, mas tudo o que eu lhe oferecia de melhor, tudo, tudo, fosse o que fosse, sempre acabava parecendo errado ou insuficiente. Sinto-me como um homem que passou a vida inteira tentando acertar sua bolinha em uma determinada caçapa, mas nunca conseguiu. Tentou de todas as formas, por todos os meios e ângulos, mas a maldita caçapa não queria receber a bolinha. Não queria e demonstrava que nunca haveria de querer. Num determinado momento, depois de anos e anos de tentativas inúteis, o homem enche o saco, perde a paciência que lhe restava, apanha um machado de 7 quilos (desses machados de bombeiro) e resolve destruir a mesa, a caçapa e a bolinha. Manda tudo às favas, arrebenta, esmigalha, tritura e percebe que aquele jogo nunca fora o seu jogo; era apenas uma armadilha destinada a minar sua autoconfiança.

No dia em que, pela última vez, eu fechar as portas daquela casa, seguirei em frente e não olharei para trás. Nunca mais pretendo passar por aquela rua. Se, num descuido qualquer, mesmo contra minha vontade, acontecer de eu passar por ali - fecharei os olhos e imaginarei estar em qualquer outra parte do mundo. Não verei a casa novamente, não verei o que quer que tenham construído em seu lugar.
Tenho, hoje, plena convicção de que fui um menino que teve tudo e não teve nada. O que existe de bom em mim, agora como homem, se é que existe, eu mesmo criei, cultivei e desenvolvi apesar dos pesares, apesar da velha casa de Perdizes - onde tive poucos belos sonhos e muitos, muitos pesadelos.
Game over!
Abracadabra!
New game!
Qualquer novo jogo serve, desde que seja outro, desde que seja bem diferente daquele jogo que já perdi ou que se perdeu por si mesmo.

cmagico

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