1.3.04

QUARESMA

Cheiro de mijo subindo da calçada grita Quarta-feira de Cinzas, alegria perdida. Esse fedor é a única coisa que fala nas ruas do Centro, o resto é um silêncio de cadáver. Bati a porta de ferro do prédio na saída da Rio Branco e me assustei com o fim de festa nítido no que não era dito nem cantado, na falta de um refrão pra puxar um monte de gente que também faltava. Um silêncio duro, fedido de doer. Um jornalista antigo me contou de um plantão quando o jornal funcionava noutro prédio, um caixotão mais pra perto do cais. Passou uma madrugada toda de carnaval lá sozinho. Olhava a sala sem fundo, por cima das mesas, das baias e das máquinas, poucas lâmpadas acesas, ninguém. Morrer deve ser isso: uma redação vazia e um bloco passando lá fora. Aquela gente toda, cadê?

Que coisa que eu vi no Simpatia é quase amor. Na verdade, fora dele: lá de baixo vi a doentinha da janela, olhando pra gente passando na Vieira Souto. Uma mulher de camisola branca, nem acenar acenava, nem jogar confete. De todo mundo que via a festa passar longe, vigiando do alto - e são sempre muitos - aquela era a única que queria descer, vontade inútil nos olhos vegetativos. Tomara que tenha sido só ressaca da noite anterior, que tenha brincado muito, que tenha saído muito alegre e alguém num bloco tenha parado na sua boca um minuto, cantado um número de telefone pra ela ligar quando curasse o porre. Aquela gente toda, cadê?

Eu não entendo porra nenhuma de carnaval. É uma besteira pra esquecer outras besteiras. Atrás de uma bateria e de um carro de som, é tudo besteira. É isso e mais alguma coisa, que a minha burrice não alcança. Já fico satisfeita de lembrar de cada bloco que acompanhei este ano. Escravos da Mauá, Simpatia é quase amor, Bola Preta, Bip Bip, Bloco de Segunda, Banda de Ipanema, Charanga 3D e Lapa. Fui ainda no Fla Flu de sábado (maracanã no carnaval, meu time ganhando: isso é mais ópio que De Quincey consumiu a vida toda), num baile inusitado, no baile mais respeitável da Orquestra Imperial, na despedida de um tal de Emanuelle que viajou e eu continuo sem saber quem é, assisti a quatro filmes, dei plantão no jornal em dois dias. E mexi num capítulo do livro.

(...)

PROCESSO PERVERTIDO

Decidi entregar na mão deles e ver o que acontece. Não adianta tentar controlar. Se o velho com a boca e os intestinos podres decidir morar na casa, que more. Se a garota decidir dar pra ele, que dê. Se a autora fizer vista grossa, que faça. Assino embaixo depois e ficamos todos livres.

"vida é o mundo"

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