MEUS CACHORROS
Da série Minha infância não atravessa a rua sozinha
Eu tive meus cachorros e fui me desvencilhando das cordas e coleiras, da proximidade. Não criei mais laços com os latidos. Finjo que não tenho mãos para demonstrar afeto. Meus cães eram vivazes, vira-latas, baldios. O primeiro tinha o nome de Xodó e a empregada tratou de deixar o portão aberto de propósito. Nunca mais foi visto. Nem ele muito menos a empregada. O segundo surgiu no dia 7 de setembro e dei o nome de Sete. Eu assistia Moby Dick e chovia canivetes. Apareceu na porta, encolhido, doente e famigerado. Pedia uma vida para dar. Não sei como consegui convencer minha mãe. Criança tem seus truques. Depois de adulto, nossas mentiras assumem cacoetes e são percebidas a distância. Sete morreu ao escapar de meus braços e cruzar a rua. Era o meu aniversário, três anos juntos, seu pêlo castanho combinava com meus cabelos loiros. Ele jogava futebol com laranjas. Andava pelos muros como um gato. Me lambia no rosto quando chorava. Estava colocando uma camisa nele. Claro, que cachorro não gosta de bancar o boneco de pelúcia. Ele se revoltou com a blusa e pulou para fora da calçada. Um carro o fez vento e velocímetro. A culpa me engasgou e virou asma. Eu vi Sete se despedir debaixo das rodas. Seu olhar de pulseira de relógio, o gemido do ponteiro, que qualquer um pode escutar ao aproximar o tempo do ouvido. O gemido longo - início de um uivo - que guardei no pátio, com uma cruz, feita de uma antiga pipa, e a inscrição: "Meu cachorro não sofre do medo do paraíso".
.:. Fabricio Carpinejar .:.
1.3.04
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