14.4.04

23:30 - Rua deserta, a garota começa a subir a ladeira que a leva direto do ponto de ônibus para a rua de sua casa, daí é só dobrar a direita e andar uns 200 metros, quer dizer, se a numeração da prefeitura estiver correta, ela mora no 292.
Passa pelo guarda noturno e dá boa noite, ele faz seu trabalho, vê o bastante pra evitar, finge que não vê o que já está acontecendo, é sempre assim, as vezes avisa alguém: "Olha, tem um cara suspeito alí, dá um tempo pra passar", as vezes faz o favor de socorrer a vítima quando foi assaltada, a vida é assim, é assim que mantém sua vida. Um mês depois sumiria, e sua mãe ia vagar pelas ruas pedindo dinheiro e comida de vez em quando, pobre velha, ia fazer isso até sumir e ninguém lembrar, dela ou do filho.
Mas voltando a garota, a noite está bela e a rua, em seu ponto mais plano mostra a melhor vista do céu da região, é uma encruzilhada irregular, com quatro ângulos totalmente diferentes, o que cria uma várzea bem no meio da rua, as vezes algum mendigo dorme nessa várzea, causando problema para motoristas desavisados, as vezes é apenas o lugar mais romântico para os que voltam da faculdade. Ela olha o céu e se pergunta se não pode ser sempre assim, vai chegar em casa e sua mãe alcoolotra vai gritar que ela estava dando, e não estudando, vai acordar cedo e descobri que não tem café da manhã, pois seu irmão comeu tudo antes dela acordar, então, depois de um dia de trabalho, e 4 horas quase dormindo na aula de cálculo, vai poder passar nesse ponto, o único ponto alto da sua vida.
Continua andando pela rua, passa pela casa da Dona Ana, pela casa daquele menino que morreu, como é mesmo o nome? Não sabe, mas foi estranho, ataque cardíaco aos 17, quem poderia prever? Lembra que a Denise, filha da Dona Ana gostava dele, lamenta, não quer nunca passar por isso.
A fábrica de chocolates! O estacionamento escuro, para 4 carros, está quase no final do terreno duplo que ele cobre, cada terreno é mais ou menos 10 passos, um metro por passo, ela viu isso num livro, ela conta os passos, ela sempre conta os passos, os terrenos de dez por vinte e cinco, ela sabe disso, ela estuda áreas na faculdade, o terreno é duplo, vinte por vinte e cinco, ela conta os passos... quinze, dezeseis, dezesete, dezoito... nunca entendeu porque contava, uma vez um ex-namorado lhe jogou na cara que ser superdotada é quase como ser autista, ela é uma criança contando os passos o tempo todo...
- Pára aí!
O rapaz tem uma arma, e tá sangrando, não quer que ela o veja, mas quer alcançar sua bolsa...
Ela pára, imediatamente lembra da amiga que foi esfaqueada um mês antes, morava quase no 400, desceu a rua sangrando, ninguém ajudou, toda rua fingiu que não viu.
- Não tenho dinheiro, tô voltando da faculdade!
- Mostra a bolsa!
É fácil, é uma bolsa com fecho de ímã, basta puxar forte, ela dá um tranco e empurra a carteira pra debaixo dos livros, tem réguas e mil quinquilharias lá, e o cara não quer chegar perto. Ele chega o bastante pra mexer na bolsa com a arma, não repara na carteira, da mesma cor que o fundo, vê o porta moedas, e o talão de cheques, droga, viu a calculadora científica, vai levar de novo! É a quarta esse mês, o pior é que o cara pensa que é agenda eletrônica, leva no ponto, não consegue nada, isso só interessa a estudante...
- Não tem dinheiro não?
- Cara, só ticket e passes, mas dá um supermercado de tícket... (ela quer que tudo acabe, passa um talão, na verdade exagerou, tem uns cinco, mas tem certeza que ele não vai conferir, passa o porta moedas, aí realmente tinha a condução duma semana, ida e volta, paciência, periferia é isso aí).
- E esse talão aí?
- Pode levar, chegando em casa eu cancelo!
- Bocuda, hein?
- Cê tá na área faz tempo, todo mundo já tá avisado, cara, só vai pegar migalha!
- Não pedi sua opinião, vira de costas e anda, não olha pra trás!
Ela quase caga de medo, por minuto pensa que ele vai atirar, lógico que olha pra trás, como não fazer o proibido? Uma cicatriz na nuca, seja o que for, o cara se ferrou mais que ela hoje.
Chega em casa e conta pro pai. Não há nada a fazer, os velhos, sustentando seus vícios, a velha na bebida e o velho o vício de amar uma louca, não vão poder ajudar a filha... mais uma calculadora científica... vai pesar no fim do mês, ela já pendurou duas mensalidades na faculdade (era faculdade paga ou parar de trabalhar, a pública era diurna).
Nesse sábado tem churrasco de rua, o dono do bar pede cinco mangos pra cada freguês, compra carne de segunda e não cobra uma caipirinha que acaba pouco depois que começa. O pai leva um pouco da carne dura pra filha e pra velha, a filha não come, faz contas de cabeça, é tudo muito mais fracionado quando se sai do colegial e vai pra faculdade, é tudo mais difícil, as raizes ficam imensas... a velha resmunga, pega uma das suas oito, ou nove, ou dez cervejas diárias e come com carne dura, não pelo gosto da carne, mas pelo gosto da fidelidade do marido, levar pra ela, primeiro ela, a cerveja e a carne dela! Depois ele, e bem mais depois, a filha.
É calor, mas ele carrega um blusão de couro, talvez a blusa mais cara que tenha conseguido na vida, em dois ou três minutos ele enxerga o Magrão, feliz, no centro da roda, cercado de amigos, churrasco e cerveja, o mais bem servido no bar, meio encabulado e sem saber direito o que faz, ele chama o rapaz:
- Magrão?
- Diga, seu Marco! Bom vizinho, nunca deu problema, vai e volta todo dia do trabalho! Tô de olho no senhor!
- Sim, é sobre isso, eu agradeço, mas minha filha...
- Conte...
- Um cliente seu... ela nem vai mais na polícia... a última vez o delegado perguntou se tinham estuprado ela, ela disse que não, então ele disse: "Tá aqui porque então? Vai pra casa e deixa eu trabalhar..." Magrão, é a quarta vez e é um cliente seu...
- Sabe o nome?
- Ironicamente, ele é xará dela.
- Pode deixar, seu Marco, isso não vai acontecer mais!
Seu Marco sente um frio na barriga, depois de um pedido desse precisa de algo forte! Pede um rabo de galo, e vira, vira tudo, ela vai ficar chateada, hoje não vai ter diferença entre o pai e a mãe. Vira pro balcão, seu blusão de couro sumiu, o Magrão também, ele olha indiferente toda aquela turma, que estava em volta do Magrão, todos olham pra ele com cara de "eu não ví", ele pede outro rabo de galo, hoje ele é amigo de sua mulher, em sua realidade triste... periferia...
Outra noite, e outra noite, e não se sabe quantas noites, mas nesta choveu, e cinco trovões caíram do céu, ou foram trovões que a periferia ouviu... ao subir pra trabalhar, a garota ficou sabendo, seu xára táva alí, no terreno baldio, cinco tiros e a pele branca de quem a chuva escorreu todo sangue. Ela passa reto.
A polícia sempre é a última a chegar, e ninguém nunca sabe de nada...
Noite escura, e ela passa pelo guarda, dá oi, e estranha, ele tem a cara raspada! Pára na várzea e olha as estrelas, a noite tá mais calma, que seria da periferia sem Magrão! O cara sabe das coisas, sabe quem é dos dele e quem não convém. Chegando em casa fica sabendo, tudo que a polícia conseguiu arrancar é que o assassino era um bigodudo. Durante muito tempo, até o próximo churrasco, todos os homens do bairro, todos os amigos do Magrão, e o próprio, usariam cara raspada.
O blusão de couro? Nunca mais se viu, o presente mais caro que seu pai tinha ganhado, mais caro que todas as calculadoras juntas...

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