5.4.04

Ela nem havia nascido direito e já estava pintando os dedinhos. Sempre se esquecia de ler quando apoiava a mão na estante de livros e descobria uma unha descascada entre duas lombadas. Piccola biografia. Só gostava de ir à praia no Leblon, almoçar na Gávea e ir ao cinema na Barra, onde eu ia assim fritando o meu fígado. Eu não podia reclamar porque também só havia atravessado o túnel depois dos 18 anos. A televisão está ligada no BBB enquanto tiro um cochilo com um livro de Cesário Verde no colo na página de

"Naquele "pic-nique" de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.
Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.
Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão de ló molhado em malvasia.
Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas."

Piesporter Michelsberg é o nome do vinho alemão vagabundo que estou bebendo. Comprei ontem uma caixa. Muriel está no celular comentando o que vejo na tv com alguém que não sei quem é chamado Andre, sem acento. Ontem Muriel disse que Andre leu meus poemas inacabados que deixei sobre a mesa do escritório. Eu não sei quando Andre esteve aqui e quem lhe deu permissão para entrar no meu escritório na minha ausência. Muriel concluiu a história dizendo que Andre achou que eu escrevo "parecido" com Sá de Miranda. Claro que ele não entende nada de poesia, eu disse. Muriel revirou os olhos e mudou de canal. Aqui em casa as conversas nunca acabam no mesmo dia. "Precisamos trocar as capas das almofadas" por exemplo já dura umas duas semanas. Há seis meses Muriel não consegue entender por que não quero publicar livros, embora escreva freneticamente. Eu já expliquei umas 180 vezes, mas é como o vento, ela fecha as janelas. Mesmo assim continuamos ouvindo o vizinho que tosse. Uma tosse seca que atravessa a noite, nos acorda de madrugada e avisa quando está saindo lá do corredor do prédio pela manhã. Muriel tem andado histérica por isso. Final do ano mudamos para uma casa, prometo. Ela joga o resto da torrada sobre a mesa, me dá um beijo e bate a porta. Procuro Cesário Verde no fundo do sofá onde acho que o perdi e encontro o controle remoto. Mais tarde Muriel gostará de saber que aprendi na tv os benefícios à coluna que só os colchões da Filadélfia poderão nos trazer.

Prosa Caotica

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