5.4.04

É o lobo! É o lobo! É o lobo!

Os piores dias de insônia são aqueles que acabam às sete da manhã. Até às quatro, tudo bem. Tiro minhas quatro, cinco horas de sono, acordo relativamente cedo e fico em paz. Às sete, não. Às sete meu tempo de sono é reduzido pela metade e eu passo o resto do dia sonada.
Ontem foi assim. Por mais que eu me esforçasse para manter os olhos abertos, tudo parecia um sonho com picos de pesadelo. Para piorar, eu tive que sair da matrix e ir para uma reunião, bem no começo da tarde.
Cheguei na distribuidora e esperei bocejando quarenta e cinco minutos, para a lesada da recepcionista me avisar que o dono (que me deve há meses o valor de uma grande remessa de livros), tinha saído e ela não havia percebido. Eu estava tão embriagada de sono que nem reclamei. Aproveitei que estava perto da casa de uma velha amiga, pedi para usar o telefone por um minuto, fiz uma ligação internacional para um primo querido que mora em Nova Guiné, deixei recado na secretária eletrônica dele e fui embora. Do orelhão, do lado de fora da distribuidora, liguei para minha amiga e combinamos de nos encontrar.

- Alê, quanto tempo! Onde você está?
- Aqui na Freguesia. Pertinho da sua casa.
- Passa aqui. Você almoça comigo e botamos o papo em dia.

Logo depois do almoço, pensei em ir embora - o sono estava apertando. Ela insistiu que eu ficasse e começamos uma maratona de cafezinhos para que eu parasse em pé. Papo vai, papo vem, desenterramos sacos de fotografias e histórias. Eu já estava mais esperta quando, de repente, um barulho de avião irrompeu alto demais para acreditarmos que ele estaria no céu.
Saímos correndo em direção ao quintal. Por puro instinto de sobrevivência, minha primeira reação foi querer me esconder embaixo de uma cama, mas minha curiosidade e sensação de que aquilo poderia ser um pesadelo me arrastaram para o lado de fora da casa.
Ainda no corredor, ouvimos os gritos de uma vizinha...

- Ataque terrorista! Ataque terrorista! Ataque terrorista!

Já minha amiga...

- Puta-que-o-pariu! O avião! O avião! O avião!

Sempre que eu fico muito nervosa, começo a rir e a tremer como uma vara verde. Ver aquele teco-teco atravessar a avenida diante dos nossos olhos, ouvir os gritos da vizinha apavorada como se estivesse no Word Trade Center e ver a minha amiga bancar o Tatu da Ilha da Fantasia, me fez perder o controle sobre os músculos da face e das pernas. Só recuperei meus movimentos porque cismei que aquilo era um sonho e eu precisava ou aproveitar ou despertar.
Espremi os olhos e ergui os braços para voar e nada... Voltei para dentro da casa, fechei e abri os olhos, procurei atrás da porta, e nada de me deparar com o Nicolas Cage... Nem sequer um figurante de capa e máscara preta. Ao constatar que não era sonho, dei uma última saculejada no corpo e voltei para o quintal onde estava a minha amiga. Estarrecidas, abrimos o portão e vimos o monomotor pousar no meio da rua e dar de bico na porta de uma empresa a poucos metros de onde estávamos. De olhos e bocas arregalados, seguimos em direção à nave e vimos o piloto e o co-piloto saírem intactos e olharem para as nossas caras como se fossem o Picard e o Data dando um rolê pelo Holodeck.
Em busca de socorro, minha amiga pegou o celular...

- Fiquem tranqüilos estou ligando para a polícia.
- Que polícia? Que mané polícia o quê! Tem que chamar o bombeiro.
- Mas não tem incêndio!
- É mesmo... Como pode não ter incêndio?
- Ele pousou! Ele pousou! Ele pousou!
- Então chama uma ambulância!
- Qual é o telefone da ambulância?
- Ah, daqui esse telefone que a minha mãe deve saber....

Ao telefone...

- Mãe! Sou eu... Mãe você não vai acreditar! Caiu um avião aqui na rua e...
- Alessandra, você não tem mais o que fazer da sua vida? Está na hora de você crescer e parar com essa palhaçada de primeiro de abril. E vou dizer mais: Sua avó, me contou que você se matou de novo no blog. Quantos anos você pensa que tem? Todo ano é a mesma coisa! Você não...
- Mãe, escuta: eu preciso saber o telefone da ambulância!
- Ah, vá! Como é que você diz mesmo? Lembrei! Escuta só a musiquinha - Tu, tu, tu, tu, tu, tu....

Não acreditei. A estressada desligou o telefone na minha cara, usando a minha técnica de desligar telefone na cara. Me senti o pastor mentiroso da história infantil e me dei conta de que, se dependesse dos meus conhecidos, o lobo estava prestes a devorar as minhas ovelhinhas...

- Alê, a ambulância! E a ambulância?
- Esqueça a ambulância. Não tem ninguém ferido aqui. Eu preciso é de um jornalista e um fotógrafo que não saibam do meu passado e registrem o que eu estou vendo...

E você aí? Está achando que eu inventei essa história é? Vai procurar nos noticiários o que aconteceu com o monomotor que pousou em uma avenida da Freguesia do Ó neste 1º de abril, vai... Vai ver o que é bom pra tosse. E tem mais! Além disso tudo ter acontecido de verdade, eu, logo eu, fui pega no pior primeiro de abril da minha vida. Mas amanhã eu conto o vexame. Agora eu preciso dar um jeito de acordar desse pesadelo ou encontrar de uma vez por todas o Nicolas Cage vestido de zorro atrás de uma porta... Com todo o respeito pelo senhor meu maridon... claro!


Licor de Marula com Flocos de Milho Açucarados

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